Mercado de ações

Público-alvo

Este conto for escrito sobretudo para adultos de trinta e poucos anos que não tiveram filhos ainda. Gostaria que fossem eles os meus leitores, pois a narrativa fala dessa faixa etária atualmente comum e vazia: um espaço entre a adolescência e a fase adulta que se estende por décadas. O adulto de trinta e tantos anos sem filho vive como adolescente, numa transição interminável.

Pensemos num modelo de leitor. Gabriel. Há muitos Gabriéis de trinta e poucos anos. Nascidos em meado dos anos 80, o ápice das mães solteiras – talvez, amarguradas, elas se apegassem aos anjos da guarda e esperassem visitas noturnas trazendo boas novas celestiais. Gabriel, meu leitor, não visita mães solteiras. Nem recebe visitas. Seu dia é repetitivo. Acorda às oito e faz café em lentidão. Coloca um pão de forma com bastante manteiga na sanduicheira. Deixa tostar. Tem tempo. Gabriel vive do mercado financeiro. Trabalha cinco horas por dia. Colocou na cabeça que qualidade de vida é passar cinco horas diárias na frente do computador, acompanhando gráficos e se entupindo de açúcar. Decidiu que juntará seu primeiro milhão até os quarenta anos – algo que ele chama de Plano Autonomia Plus.

Em seguida vai reduzir gradativamente as horas de trabalho, até que aos quarenta e seis anos só precise investimentos a longo prazo. Terá o dia todo pela frente, embora não saiba o que fazer com ele.

Há intervalos pra masturbação. Entre 10 e 10 e trinta da manhã, quando o mercado desacelera e as cam girls acordam. Sua predileta se chama Laurita: ruiva, alta, dominadora. Enquanto muitos concorrentes usam cocaína pra baixar a tensão, Gabriel prefere a masturbação – e o açúcar. É casado. Mas prefere a masturbação e o açúcar. E depois que goza é como se sua vida não fizesse sentido. Talvez a sensação do pós-orgasmo-solitário seja a mesma que Gabriel sentirá no pós-milhão.

Sua mulher é enfermeira e trabalha em plantões bastante esparsados. Gabriel se sente muito sozinho, nos dias do plantão da mulher. Mas ele também se sente sozinho, uma solidão profundamente mais dolorosa, quando ela está em casa. É por isso que eles vão juntos ao mercado. E isso é o que fazem de melhor. Fazem compras muito bem. Nada de arroz e feijão. Se quiserem arroz e feijão, pagam uma quentinha. São bons com integrais, lacticínios, biscoitinhos, cervejas artesanais, barras de cereal e doces, muito açúcar, que Gabriel só consegue atravessar suas cinco horas de mercado financeiro drogado. É por isso que gostaria que Gabriel fosse o público-alvo desse conto.

Agora eu imagino Gabriel deitado na cama, braços estirados pra trás. A mulher está de plantão. Ele já viu o sexto filme de Tarantino, desde que decidiu que iria ver todos os filmes de todos os bons diretores do cinema mundial, a começar por Tarantino. Já passou fio dental e enxaguante bucal. Já viu Laurita. E também já ganhou um lucro de 340%. Mas Gabriel nunca se satisfaz. Porque ele quer é outra coisa que ele mesmo não sabe o nome.

Por isso ele pega este conto pra ler. Pra preencher o vazio. Para encontrar uma borda. Ao termina-lo, após uns risinhos e talvez uma reflexão, Gabriel teria que retomar sua vida de mercado financeiro, cam girls e açúcar. Seria inútil. Então prefiro que ele não conclua a leitura. Prefiro que a mulher o interrompa, entrando em casa fora do horário usual, ansiosa para dar a ele a notícia, “Fiz o teste de farmácia, deu positivo, depois fiz o de sangue, deu positivo, nós vamos ter um filho”. E Gabriel vai chorar por uma alegria desmedida, porque de repente o vazio ganhou um nome.

Gabriel vai sorrir para a mulher e dizer, precisamos comemorar. Ele vai tirar dinheiro do Plano

Autonomia Plus, em vez de doces, vai tomar vinho, em vez de masturbação, vai fazer amor, em vez de se aposentar aos quarenta e cinco anos, já não sabe mais o que quer, aliás, sabe sim, vai parar de comer tanto açúcar e vai fazer um check-up e vai se matricular numa academia – não quer parecer o vovô Gabriel quando seu filho estiver na idade de correr e brincar – também vai remover a contas no site de câmeras eróticas, adeus, Laurita, adeus, é tempo de tomar todos os cuidados com o feto, deixa-lo crescer num lar menos entediante que o atual, e Gabriel acha que pode fazer isso, que é capaz, pois sente que sua pele rasgou feito uma bola de chiclete que estoura, dando lugar a outra, a novos ossos, mais rígidos, a novos órgãos, um novo cheiro, um novo rosto.

(Quanto a este conto, Gabriel o relerá assim que essas bobagens desaparecerem de sua mente – talvez quando o filho sair de casa).