Armário de livros

Aleatórios

Duas horas da madruga… 

O sono estava maravilhoso. A coberta, aconchegante. O barulhinho do ar-condicionado e a porta fechada protegiam meu encontro com Morfeu das perturbações do resto do mundo. Pelo menos, era assim que deveria ser.  

Primeiro a invasão se deu no sonho. Sabe quando você está dormindo e os ruídos externos se incorporam ao mundo onírico, na vã tentativa impedir seu despertar? Pois é… 

Estava eu, passeando na praia. Uma bateria de escola de samba, carregada na percussão, começou a atravessar meu caminho, criando um obstáculo intransponível até o mar. Aquilo ali estava incômodo e estranho, não tinha mais como me demorar por lá.  A paisagem foi esmaecendo e, aos poucos, os sentidos foram sendo retomados. 

Primeiramente, a audição, que continuava a captar aquelas batidas que me atravessaram o rumo do banho oceânico. Agora mais pareciam um grande bumbo seco na frieza da vida real. Não demorou muito mais tempo e acordei de vez, conseguindo, enfim, abrir os olhos. 

Mesmo com a porta fechada, o barulho era alto. Saí do quarto e, à medida que me aproximava da sala, o ruído só aumentava. Adentrando o recinto, notei que a mesa, o sofá e a velha cadeira de balanço do vovô estavam todos em ordem. Mas o armário dos livros, apesar de permanecer trancado, sacudia, balançava, debatia-se, como se vivo estivesse. O batuque desenfreado aumentava, então tomei a decisão da qual logo me arrependeria: abri a porta. 

Sem demora, os volumes começaram a sair, tomar conta daquele espaço, voar por todos os cantos… mas não todos os livros, apenas alguns mais rebeldes, de autores da Baixada.  

Com gentileza, sem me arranhar a pele, fui logo tocado pela Epiderme Poética de Nice Neves. Enquanto isso, Ao Pé do Ouvido, Charlene França, em segredo, sussurrava sobre a Pétala que colhera do jardim de Thaís Reis. Os livros, todos Alados, só obedeciam a Luiz Medina, menos o Poema Caótico, que foi passear com Totó, em Morro Agudo. Por ironia do destino, Colinha dava uma colada nos próximos contos do Carlos Mendes, enquanto este navegava pelas palavras de Marujo.  

Lá pelas tantas, sem ensaio, os poemas pelados já queriam arrancar as cuecas do Thiago Kuerques, mas Sil se esforçava por conter todas aquelas Oscilações. Menos preocupados, os contos minimalistas de Moduan pularam pela janela e foram procurar pelas portas das lojas onde poderiam criar novos poemas-instalações, sem se preocupar com os Signos de quem fosse ler.  Deixaram cacos de vidro pelo caminho, rasgando os Passos Calçados de Bollmann, que, por sorte, não cortou o pé. 

Recordando-se de Jonatan Magela, alguns livros, inconformados com suas Vidas Irrisórias, quebraram as lâmpadas. Tudo escuro. Os fanzines de Cézar Ray tiveram um Desmaio Públiko, mas logo Sergio-Salles-OigerS fez uma Gambiarra Profana e a sagrada luz voltou ao ambiente. Por sorte, Klem, com seu machado de prata, cortou logo aquela bagunça, explicando-me depois que Pecado é apenas uma palavra sinônimo de desejo e que, na verdade, todos aqueles livros desejavam voltar para seus lugares. Enfim, respirei aliviado. 

A desordem estava desfeita e o armário, novamente trancado, tinha parado de sacolejar. Lancei os olhos por toda a sala e percebi que apenas um livro permanecia de fora, esquecido aleatoriamente sobre a cadeira de balanço. E seu título era: “Aleatórios, Coletânea de Contos”.