Napoleão Bonaparte

Sanidade versus Loucura

Marlene adentra a sala administrativa do enorme prédio onde trabalhava, assina o ponto e suspira! Era o final de mais um dia de trabalho, dirige-se ao vestuário, pensando em trocar o uniforme, quando observa Joãozito, um dos internos, tocando piano, nos próprios dentes. Ela faz um leve aceno, com tristeza! Trabalha no manicômio da cidade há 15 anos e cenas como estas ainda hoje lhe afetam. Já no pátio, ela vê Marivaldo correndo na sua direção. Ele a faz parar pulando na sua frente e pergunta:

– Sabe quem eu sou? Sabe? Sabe? Sabe quem eu sou? – Ela sorri, já conhecendo a brincadeira e diz que não, então Marivaldo exultante grita:

– Eu sou Napoleão Bonaparte! Napoleão! É, Eu sou Napoleão! – rindo ela se desvia dele e segue.

Dois metros à frente ele surge novamente com a celebre pergunta:

– Sabe quem eu sou? Sabe? Sabe? Sabe quem eu sou?

Ela mais uma vez diz que não e ele responde:

– Eu sou Tiradentes! Meu nome é Joaquim José da Silva Xavier! É, Tiradentes! Eu sou, eu sou Tiradentes.

Ela ri, segue e em mais alguns metros ele sai de trás de uma coluna com a mesma pergunta: “Sabe quem eu sou? Sabe quem eu sou?”. Outras vezes Marlene responde que não e ele desfia, diante dela, Joana D’arc, Dom Pixote de La Mancha, Visconde de Sabugosa e até o pintinho
amarelinho. Já no carro, ela lamenta a sorte daqueles pobres coitados, confinados, sem respeito, sem vontades… Neste momento o celular toca, era Afrânio, seu marido, cancelando o programa que teriam mais tarde: A festa de noivado de Julia, sua melhor amiga. Visivelmente chateada, ela volta a pensar no Marivaldo, no Joãozito, na Lerusca e nos outros 160 internos. Isso a faz se sentir tão agradecida por sua sanidade mental; afinal como seria viver sem direitos, sem voz, sem atenção… O telefone a chama novamente, agora era Leila, a doméstica, reclamando que o Edu, Eduardo, seu filho mais moço, invadiu de novo a casa com seus amigos “Chincheiros”, barulhentos e que agora
dançavam funk na sala, molhados da água da piscina… Ela para no sinal, olha o vendedor de bala, um menino ainda, lembra do seu… Quantas vezes disse a Eduardo que não o queria em tais companhias? Quantas vezes o proibiu de levar aqueles maus elementos na sua casa? O sinal abre, ela segue e percebe seus pensamento a levando de volta aos pacientes. Ela sacode inconscientemente a cabeça, queria pensar em outras coisas, mas hoje ela está especialmente afetada… E o tema é loucura versus sanidade. Loucura que faz dos dentes de Joãozito teclas de
piano; da Lerusca, uma fada!… De asas tão grandes, que se não ficarmos atentos pula do oitavo andar, sem paraquedas. O Marivaldo, que pode ser o que ele quiser. Outro sinal vermelho, o transito está péssimo, tudo parado! O que a leva de volta as suas reflexões: A sanidade mental! Que sorte a dela, poder ir e vir onde quiser! Se bem que, não ir ao noivado da Julia… Ela pondera, não é exatamente uma vontade sua, mas… Ela dá de mão, prefere continuar enumerando as vantagens de ser sã! Uma coisa da qual, nem louca, abriria mão, era de gritar seus direitos… Ter voz!… É verdade que, lembrando Eduardo… Bem, ele não a ouve nem com um berrante! Ou pior, se ouve, não escuta.

O guarda de transito surge e orienta um desvio, um atalho. A luz do dia dava lugar à luz da noite, dos bares… Por falar em bar, aquele não é Afrânio, o seu Marido? Marlene limpa os olhos… Ela não acredita no que vê! Ele havia cancelado a ida ao noivado, porque tinha trabalho importante atrasado na empresa, mas ele estava ali! Beijava escandalosamente a boca de um rapaz bonito e alourado… E para piorar, mais jovem que ela! Marlene não suporta! Aí, lembra de Marivaldo… Da diversidade de humanos que existem dentro dele. E por isso, ela o inveja… Ser outras mulheres! A amada; a respeitada; a livre… A ouvida.

Enfim, Marlene abandona o carro ali no sinal, atravessa a pista e pega o primeiro táxi de volta ao trabalho.

De volta, no pátio valsou ao som do piano de Joãozito, que solfejava a oitava de Beethoven; voou nas asas da fada Larusca e terminou a noite sendo Robin, do Batman; o Pink, do Cérebro e a Maria Bonita, o par perfeito de Mariovaldo!

Que loucura!!!