Saga insana – A revolta dos bonecos

Beco

Já faz um tempo que me enclausurei em meu eterno cantinho no sobradinho em cima do antigo bilhar, nos fundos da ruazinha sem saída, onde, outrora, em boa época, tudo aqui fervilhava… Mas, hoje?! Só sombras e solidão, dando sentido, curiosamente, ao nome deste beco registrado no meu domicilio: “Beco da solidão”! Local onde nem mais o carteiro compareça, muito embora, por aqui tenho visto de quase tudo sendo despachado, de cadáver desovado à carcaça de submarino com bandeira turca. Estando cercado de mazelas por todos os lados, resolvi fazer do meu cantinho uma espécie de bunker, instalando uma boa porta de aço com cinco trancas… Assim coexistindo com fantasmas, confinado em minhas próprias limitações mais viscerais, vivo entrincheirado a observar um mundo insano se desenrolando do lado de fora. Em casos de extremas necessidades corro ao mercado e bancos, saindo e regressando sempre furtivamente, sentindo-me guiado por alguma força crucial da natureza que me mantém sempre alerta; E, já faz algum tempo que não gozo de uma boa noite de sono, dormitando com um olho fechado e o outro aberto…

Há tempos percebo vigorar uma nova ordem urbana em uma sociedade invertidamente instalada. Reina o caos por toda parte. E, na pracinha aqui em frente, venho observando uma movimentação estranha. Prevejo tempos ainda mais incertos, quando relembro das falas icônicas pronunciadas pela bocarra escancarada do velho mendigo “Utópico” montado em seu fiel companheiro pangaré, alardeando um grotesco final dos tempos!

Venho assim sobrevivendo com as minhas descrenças. E, bem sei, possam até parecer meras paranoias, como esquisitices tolas de um velho lobo solitário. Sim! Passei a cultuar hábitos estranhos aos olhos alheios, como a coisa de verificar se a porta está bem trancada, inspecionando sistematicamente as cinco fechaduras, de cima pra baixo e vice-e-versa. Curto ouvir os meus próprios sons corporais – os ruídos em tons e semitons vindos das acomodações de entranhas. Que, por força das circunstâncias, passei a apreciar comida requentada e de dormitar quase nu, vestindo apenas uma cueca samba canção rota e larga, mas que é aquela de fé; tamanho GG, super confortável! Embora esteja já bem gasta e um tanto carcomida nos fundilhos – é que tenho as coxas juntas e com o tempo, calor, suor e o roça-roça vai ficando puída… Mas, é ela que me apetece nos meus melhores sonos possíveis… Necessito dormir… É tão simples: – É só fechar os olhos…

Quando sou despertado daquele sono profundo e de forma tão abrupta, mal intuo o que se sucede. Do nada, ao estilo dos espetáculos de rock, me pego sendo transportado por cima de ombros, e cabeças, e mãos alheias de marionetes desconhecidos e, sem ter como me defender, nem tento me espernear, mais preocupado das minhas partes íntimas ficarem assim bem expostas e à mostra nos entremeios dos cós e rasgos sutis, decido somente me encolher em concha. Quando dou por mim já estou no meio da avenida sem nem saber o que fora feito do meu cuecão… Sumira na multidão! Ao olhar de soslaio, ainda pude lhe reconhecer o feitio, talvez fosse pela estampa surrada, mas, já indo longe de meu alcance. Hastearam-na algures, feito uma bandeira de batalha, daquelas do tipo medieval! Nu em pelo, enfim sou carregado e posto em pé no meio da praça enquanto a polvorosa mecânica se esvai avenida afora. Aquela turba segue num mesmo rumo… rumo ao precipício onde se desemboca a via. Quem sabe, um dia alcancem o mar. Óbvio que muitos afirmarão: “É um sonho – só pode!” Mas não! Não é nenhum pesadelo! É coisa real, palpável… Com uma mão na frente e outra atrás e sem muita cerimônia me precipito por uma esquina adjacente. Reconheço o lugar: é o velho beco sem saída tão caro a mim como refúgio de minhas tantas inquietações antigas e mais uma vez me serve de esconderijo e desta feita para fuga daquela turba ensandecida que, em atos contínuos e orquestrados, seguem adentrado as casas e lugares retirando as pessoas, quebrando-lhes as rotinas, daquela mesma forma inusitada da qual fui vítima – ao menos não havia qualquer discriminação entre eles, ricos, pobres, velhos, moços, homens, mulheres… Não fazem qualquer escolha prévia, vão catando quem encontram pela frente, aquilo parece ser o apocalipse…

Procuro explicações em minhas próprias convicções… e nada! Apenas me chegam mais questionamentos… Enquanto na grande avenida em frente uma multidão imensa se arrasta, qual uma avalanche de fantoches, seres autômatos, evoluindo como uma escola de samba, em uma única direção, lembrando a clássica marcha dos dinossauros em fuga do grande cataclisma. O fumegar de nuvens e ribombar de relâmpagos marcando o horizonte contrário. Exatamente ali onde me aprumo, lembro-me bem, sempre houve um vão consolador, um vazio inquietante e um silêncio ensurdecedor… E, mais uma vez em minha vida, me vejo só, absolutamente só…

Em alívio – respiro fundo. Eis que, de repente, ouço um relincho peculiar aos meus ouvidos e uma trepidação de tralhas sendo arremessadas ao léu – eram os restos enferrujados do submarino turco; noto sombras furtivas se esgueirando dentre os entulhos, que logo se revelam numa espécie de cavalheiro montado num pangaré, ambos esqueléticos. Permanecem postados ao fundo do beco, enquanto na avenida a turba fantástica segue naquela marcha fatal rumo ao abismo. Eis o meu dilema ingrato, a escolha fatídica: estático e pelado entre extremidades surreais, numa ponta o turbilhão infernal e no fundo a figura bizarra – lógico que prefiro encarar o bisonho. Então parto pra cima, já nem ligando pra minha nudez. Paro, em ato reflexo, pois os reconheço, mesmo estando camuflados naquelas esquálidas aparências: Utópico, o ancião da praça e Distópico, o seu quixotesco parceiro burro – já mortos e enterrados há décadas. Embora esteja em ossos, ele ainda mantém as mesmas vestes do enterro. Lembro-me perfeitamente delas, foram doadas por mim numa das minhas raras ações altruístas. Sepultados e unidos nas mortes pelas mesmas misérias em vidas, e, agora, no post mortem, tripudiam sobre a minha condição precária, o meu corpo nu, o meu verdadeiro inventário vitalício – avançam num galope desengonçado, mas vão se esfumaçando e perpassam por mim como fantasmas que são e… tchum… somem no ar… Agora, eles são eu, e tudo parece que fica quieto… quieto demais… a avenida desértica lembra um cenário pós batalha: no meio de um trânsito entulhado de automóveis abandonados, os restos de corpos espalhados, algumas pessoas ainda se arrastam e agonizam, eu as sacrifico ali mesmo, sem dó… Advém-me a convicção de que sou o último humano na terra… O semáforo piscando as suas luzes sem parar… E o lusco-fusco solar me cega momentaneamente… Percebo algo sobrevoando em minha direção, a princípio penso se tratar de um pássaro e parece pousar a poucos metros de mim… Eis que a vejo ali, majestosamente desfraldada, aquela peça tão reveladora das minhas vaidades: a minha cueca de fé… Visto-a e logo sinto a proteção acolhedora e a sonolência em ato reflexo – a boa sonolência, porém me lembro da necessidade da alimentação regular, preciso comer algo, sim! Retomo o meu cantinho. Aos poucos me recomponho e o bucho cheio – a velha e boa macarronada requentada de sempre… Conversar com as minhas tripas. Lembrar-me de fechar bem a porta, tranca por tranca, uma a uma… Observar o mundo e, quem sabe, poder cerrar bem as pestanas…