O pecado da gula

Raimundinho, apesar da pouca idade, era um garoto muito trabalhador. Tinha apenas nove anos, mas na lida fazia trabalho de adulto não fugia às suas responsabilidades na casa de farinha onde trabalhava puxando e pelando mandioca com as suas três tias: Maria do Socorro de oitenta cinco anos, Maria Dórica e Raimunda Dórica, duas gêmeas de noventa anos.

Se o trabalho na vida de Raimundinho podia ser visto como uma virtude, o mesmo não podia se dizer da vontade descomunal que ele tinha de comer. O seu café da manhã eram três bisnagas com malasada¹, um prato grande de macaxeira na manteiga de garrafa, um copo duplo de café e três copos de aricorico² de caju, muito abundante no quintal da sua casa, onde morava com seus pais e seus oito irmãos. A mãe sempre reclamava dessa fome famigerada, dizendo que aquilo não era coisa de Deus, que gula era um dos pecados mais abominados por ele. Mas o pai não via mal nisso porque o menino era muito trabalhador e precisava de energia para não esmorecer na sua labuta. Depois que degustava aquele pequeno banquete matinal, seguia para a casa de farinha que ficava a uma légua dali, pensando na hora do almoço, que era sempre servido para todos que lá trabalhavam.

Quando chegava na casa de farinha a primeira coisa que fazia era pedir a benção para as três tias e depois sentar num pequeno tamborete e começar a descascar uma ruma³ de mandioca que só terminaria na sagrada hora do almoço. Mas aquele dia não reservava coisa boa para o pequeno Raimundinho…

Depois de se empanturrar com muita comida, ele foi descansar a hora do almoço na sombra das árvores ali perto. Mas ao deitar num monte de grama, sentiu uma dor muito intensa na barriga sentindo toda aquela comida se embrulhando, começou a suar frio e desmaiou. A sua tia Maria do Socorro ao ver o sobrinho naquele estado entrou em desespero e saiu em seu socorro gritando: “ O menino não pode morrer, vamos fazer um remédio prá ele.” Chamou as suas duas irmãs, pegou uma pequena coité muito encardida e pediu que elas levantassem as saias e mijassem na cumbuca. Sem pestanejar, levantaram a saia e encheram até a borda o vasilhame e entregaram para Maria do Socorro, que socou uma cabeça de alho e diversas ervas que foi catando no terreiro, Colocou naquele líquido esverdeado, deitou o corpo do sobrinho no seu colo, abriu a sua boca e empurrou todo aquele caldo goela adentro sem qualquer chance do coitado do menino recusar. Entoou uma oração murmurante e depois disse em voz alta: “ Menino, que este remédio que você tomou, salve a sua vida e te livre do pecado gula.” O menino de repente desperta, sai numa carreira infernal, com os olhos esbugalhados, a cabeça doendo muito, o intestino pegando fogo e vomitando tudo aquilo que comeu. De longe as tias dão uma longa gargalhada de satisfação e logo depois o pequeno Raimundinho já estava de volta para as suas mandiocas como se nada tivesse acontecido.

 

20 de abril de 2020

 

¹ fritada de ovo;
²refresco
³amontoado de coisas