Cascadura

O fã de Cascadura

Numa manhã qualquer de inverno, surgiu uma necessidade comercial que não havia como adiar: após quase 40 anos, precisava retornar ao bairro suburbano de Cascadura. Senti um estranho incômodo. Um redemoinho de memórias se apossou de minha mente. Após lutar muito na vida e construir um patrimônio invejável, morando num grande apartamento luxuoso na Barra da Tijuca, teria de retornar ao bairro onde nasci e me criei. Um estranho impulso interior se chocava dentro mim, revolvendo minhas entranhas: voltar ao meu passado suburbano parecia não ter sentido. Mas, por motivos comerciais, teria de ir. Perguntas ecoavam em minha cabeça contrariada: por que o destino me trouxe esse presente incômodo? Gostaria de me recusar a ter de fazer esse percurso de volta às minhas origens. Naquele momento de minha vida, acreditava que meu mundo não seria mais aquele mundo do subúrbio. Saí de meu condomínio na Barra da Tijuca e acionei o Google Maps, pois já havia esquecido como poderia chegar ao bairro onde me criei. Em meio ao trânsito insuportável do Rio, indo em sentido à Zona Norte, percebi a silhueta urbana se modificando: de prédios modernos, altos, intimidadores e com “ar agressivo”, desenhados por arquitetos robotizados, num padrão quase homogêneos, industrial e insípido, com suas fachadas espelhadas, enegrecidas, austeras e frias, com “estilo indiferente de Miami”. Percebi que era ali, naquele universo estéril que vivia.

Aos poucos percebi, ao adentrar na Zona Norte, (como se estivesse entrando numa selva desconhecida, talvez adentrando em mim mesmo) me guiei seguindo paralelo à grande estrada de ferro da antiga RFFSA, que os desenhos das habitações iam se tornavam aos poucos pequenas casas simpáticas, com coloridos vivos e contrastantes, apesar de algumas maltratadas pelo tempo e pela falta de dinheiro para a manutenção. Não havia um conjunto harmônico de casas, mas prevalecia o “jeitinho”, onde cada qual tentava criar um lar. Um remendo aqui, outro acolá, que por vezes sugeria uma colcha de retalhos. Eram pequenas janelas pintadas com cuidado (talvez) por seus próprios moradores. Árvores centenárias sobressaiam embelezando pequenas ruas simplórias e humildes.

Parei o carro sob uma dessas árvores e pisei naquele chão do subúrbio com os pés descalços. Senti-me como o astronauta que pisou na lua pela primeira vez. Havia uma sensação onde se misturava, ao mesmo tempo, o estranhamento e o pertencimento. Numa janela, uma velha senhora contemplava impassível todo o ambiente como se aquele mundo todo pertencesse somente à ela. Sobre os muros malconservados vi pinturas malfeitas e desgastadas das antigas Copas do Mundo e de seus jogadores. Pichações sobre os muros davam o “toque” do caos. Um par de tênis pendia dos fios da rede elétrica, balançando na brisa. Pequenos pardais remexiam grãos no chão. Cachorros vira-latas uivavam mansos se dirigindo em minha direção, farejando talvez seu antigo morador. Um gato negro, quase uma escultura, vigiava o espaço. Nas ruas vazias e ensolaradas sopravam um vento fresco e límpido e, ao longe, conseguia perceber o brilho do sol que refletia sobre os trilhos de aço da rede férrea que se entrecruzavam, quase ofuscando minha visão. Percebi a velha igreja do Santo Sepulcro, pequena joia de construção gótica em plena Cascadura. Era ali, em frente à igreja onde jogava futebol de rua com meus antigos colegas do colégio. Foi ali que escutei os sons do samba de Madureira e ali que um dia participei de um bloco de carnaval. Foi ali, onde minha alegria e riso eram mais intensos, puros e ingênuos. Uma intensa sensação de nostalgia me atingiu. Uma ilusão estúpida e bela de reviver, aqueles momentos únicos e intensos. Uma lágrima furtiva clara e límpida brotou de olhos marejados, diante da escuridão abissal de sentimentos confusos. Invadido por uma saudade, sentei no meio-fio e chorei. Descobri que amava aquele lugar, a minha infância, minha antiga família e as pessoas que há muito deixei para trás. Descobri então que era fã sim, um fã ridículo, se posso dizer dessa forma, do humilde e belo subúrbio de Cascadura.