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Nós

“ELE criou os rios, os mares, as terras. Encheu os campos, fez erguer as geleiras, as montanhas. Povoou de vida as águas, os ares, por dentro e por fora do solo…ELE foi perfeito! Sem exceção!” – disse o padre fervorosamente em seu púlpito.

Zé, recém adepto da crença por grande influência de sua esposa, foi para casa matutando as palavras ouvidas na igreja. Chegou em casa bem a tempo do almoço. Ligou a TV para acompanhar os últimos acontecimentos pelo noticiário. Um outro país tinha se enfiado no confronto direto entre israelenses e palestinos e Rússia tinha invadido mais um pedaço do país vizinho. Falando em vizinhos, o âncora do jornal emendou com o problema da Venezuela, Guiana, petróleo, mata…Ah, a mata! Agora mostrava as chamas, o garimpo ilegal e a área pelada do verde que faltava na Amazônia.

Zé, sentindo certa indisposição estomacal por conta das notícias, resolveu trocar de canal. Na outra emissora estava passando a reprise de uma novela famosa, sucesso de audiência na primeira exibição. A mocinha, que deveria lutar por justiça, aparecia arquitetando uma vingança barra-pesada contra sua algoz. Aliás, a algoz velhaca, que se dizia eterna apaixonada pelo marido, colocava o amante dentro da própria casa, se fazendo de amigo e cunhado do esposo galhudo.

Zé sentiu uma pontada no estômago. O raio da azia tava piorando. Sem desistir da telona, colocou no canal de desenho que mostrava uma realidade alternativa onde existiam padrinhos mágicos que deveriam compensar a tristeza de um menino por ter pais omissos e uma babá que se satisfazia fazendo mal justamente às criancinhas que ela tomava conta.

Um canal de filmes seria a solução para amenizar as cólicas, Zé tinha certeza. Colocou num que passava um clássico que contava com uma família cheia de filhos, um pai viúvo ausente que se redime, se apaixona e casa com a ex-futura freira que tomava conta de seus rebentos. A dor na barriga, naquele momento, estava se tornando suportável…até que Zé toma um susto com a reviravolta do filme que mostra o estouro de uma guerra e a família tendo que deixar tudo pra trás para conseguir sobreviver junta: país, casa, dinheiro, conforto, amigos e tudo que lhes era caro…

“Zé! – grita a esposa já na porta de casa – “Vou fazer umas comprinhas e volto antes do jantar.”

Zé desliga o raio da TV e embarca no celular. Redes sociais iriam distraí-lo melhor. Desavenças políticas, insultos, maus tratos aos animais e muita fofoca brindaram os olhos do internauta. Desligou tudo e ficou apenas olhando o teto e pensando…se ELE tinha sido perfeito em toda a criação, seria o Homem uma exceção à regra? Seríamos nós a parte da criação que desvirtuou do plano divino?

Resolveu ir à missa novamente naquela noite tirar suas dúvidas, a acalmar suas angústias com o padre. Com certeza, ele teria como fazê-lo refletir melhor sobre suas ideias tão negativas. Chegou um pouco mais cedo para passar na casinha que o pároco habitava no terreno atrás da igreja. A janela estava aberta e Zé espiou para ver se tinha alguém em casa…..tinha. Mas a cena tórrida que viu entre o padre e sua própria esposa o faz dar meia volta e retornar para casa. Pegou o 38 em cima do armário e, antes de sair novamente, teve um vislumbre da resposta que tanto procurava: “é…a raça humana é um caso perdido”.