Judith Tsunami

Ano após ano ela se postava na concentração. Kit costura em punho, atendendo aos vários seguimentos da escola: os atrasados, que não conseguiam respeitar os horários, os desastrados, que vinham pela condução de qualquer jeito, sem cuidados, destruindo a frágil fantasia, os esquecidos, que sempre deixavam algo para trás na pressa e desorganização, os descansados, que não apareciam no barracão em tempo hábil para pegar suas fantasias e fazer os ajustes necessários. Esses passistas ou componentes de ala sempre acabavam com seu carnaval, seu desfile. Judith, enquanto responsável pelas costureiras da escola, tinha como obrigação zelar para que todas as fantasias estivessem em perfeitas condições de desfilar e angariar a tão sonhada nota 10.

Ficava ensandecida com os chamados que vinham de todos os lados, todos os setores, e quando precisava subir em algum carro alegórico é que o atraso se intensificava mais ainda. Este ano trouxera alguns ajudantes na expectativa de amenizar os atrasos e quem sabe desfilar na sua correta ala e posição, o que não resolvera muito, pois estava com a impressão que a demanda aumentara demasiadamente este ano. Nos outros anos, acabava acompanhando a escola pela lateral – como se fosse um dos Harmonias ou da direção – coisa humilhante para uma sambista do seu naipe. E… pelo visto, este ano não seria diferente.

Ah! Lembra-se saudosa dos anos anteriores, antes de assumir esse árduo compromisso de muita responsabilidade dentro da escola. Era respeitada como passista. Até hoje todos comentam sobre Judith Tsunami, aquela que mesclara passos de funk com samba e muita, muita sensualidade, causando furor na avenida, levantando a arquibancada, encantando os jurados. Foi com certo pesar que aceitou o pedido do presidente. Lembra como se fosse hoje: O Presidente em pessoa no seu humilde atelier, uma honra ofertada a poucos. Não podia negar um pedido daqueles, além do quê, a remuneração – apesar do trabalho ser extenuante e interminável – não era de se jogar fora.

Mas tudo na vida tem um preço, e ela descobriu na avenida que o preço que teria de pagar seria um dos mais altos. A bem da verdade é que já estava em idades de sair da ala das passistas. O convite do Presidente só acelerou o que era inevitável. Havia alguns anos que seus joelhos não resistiam à rotina de ensaios diários com as meninas mais novas e o “corpitchu“ ainda que muito bonito e vistoso, não estava aquelas maravilhas todas, ao menos para estar em destaque na avenida, obrigando-a a recorrer às estratégias femininas para disfarçar os efeitos do tempo. O chato é: uma coisa é sair dos holofotes, da ala das passistas, outra coisa é não conseguir desfilar, sambar na avenida, se esbaldar, sentir a energia da bateria tomar conta de seu corpo e sentir que o autocontrole fugiu das pernas e do restante do corpo por estar tomada da emoção do desfile.

Agora estava lá, na concentração, outro ano de correrias, agulha na mão. Não! Este ano ela faria diferente. Vestiria sua fantasia,  trabalharia até o último minuto e entraria formadinha com a ala. A bateria já está em formação no setor um, começando a tocar o “esquenta“. Judith correu para encontrar um canto a fim de se trocar e dar uns retoques na maquiagem e nos cabelos. A escola entrou na avenida, já escutava o samba enredo sendo entoado pelos componentes, tinha que apressar-se. Colocou o vestido. Falta retocar a maquiagem. Pronto! Agora o cabelo, o mais fácil, bastava pentear e colocar a tiara. Tudo certo!

Dirigiu-se correndo em direção a avenida. Estava um pouco longe, o cortejo seguia à frente, uma distância relativamente grande, chegaria ofegante, mas daria para alcançá-los pouco antes de entrarem na avenida. Espere! O funcionário da prefeitura estava fechando o portão de acesso à concentração. Se aproximou ofegante, chamou o funcionário. Pediu, implorou para que a deixasse entrar. Encontrou um pequeno rei, um poderoso de momento, um déspota de portaria que não quis saber de seus argumentos e lhe virou as costas.

Judith Tsunami sentiu o sangue ferver nas veias. Escalou o alambrado com dificuldade, já estava descendo do outro lado quando o funcionário tentou lhe impedir. Judith caiu. A fantasia rasgada. A coxa direita em sangue. Um sangue vermelho, brilhante como as cores da escola. Judith chorava – não tanto pela dor e sim pela raiva – os olhos fuzilando o funcionário. Ao fundo, ouvia a escola entoar o primeiro refrão. Sangrando muito, ainda conseguiu olhar por entre as lágrimas a última ala dobrar a esquina e entrar na Sapucaí.