Bandeira do Brasil kanga

Hipocrisia

As 05:40 da manhã, Beatriz deixa a estação do metrô. Pavuna. Franze a testa em sinal de desconforto. Há seis meses ela faz esse trajeto. E todas as manhãs são assim, como se desembarcasse no inferno. Beatriz nasceu no Rio de Janeiro, mas cresceu em Bordéis, na França, casa dos avós paternos. Voltou ao Brasil há cinco anos, prestes a completar 23. Motivo? Faleceu o ultimo de seus avós, isso a trouxe de volta à Botafogo, casa dos pais. Pedagoga, Bia prestou concurso à rede pública de sua cidade. E quatro há anos vem à frente da Gestão Escolar com sucesso. No início deste ano, com a redução no quadro de funcionários da 6ª CRE, devido a covid-19, a Secretaria de Educação remanejou funcionários de outras CRES para atender nas unidades de bairros como: Costa Barros; Acari; Barros  Filho; e, Beatriz, parou na Pavuna. E, desde então, essa triste rotina. O curto trajeto da estação até a sua unidade de ensino mais parece uma corrida com obstáculo. Pula o primeiro pedinte, que ainda dorme ao meio fio; depois desvia do cego e mudo com a plaquinha pendurada no pescoço; mais à frente, pula alguém que precisa de uma passagem  para voltar para o Ceará; um salto médio e deixa para trás o filho com a mãe em estado terminal e, de tabela, ela se livra, também, do moleque com leucemia; o adolescente que quer comprar uma caixa de jujuba para vender no trem; a mulher grávida com o filho no colo disputando fregueses com o moleque da jujuba; a prostituta, quase criança; o bêbado que vomita, sem ajuda, à beira da calçada; o bebê que grita com desespero enquanto a mãe o oferece as muxibas já secas; e do cara que quer curar os gays, lésbicas e viciados, antes de Jesus voltar. Todos os  dias eram assim! O diferencial daquela manhã era o novo obstáculo na pista de Bia. Logo ali, a dez metros da sua escola, dormindo no banco da praça, uma mulher nua, vestida apenas com a bandeira do Brasil. Na verdade, era uma canga que estampava o símbolo nacional. No entorno, burburinhos; comentários maldosos; e até mesmo obscenos. Era uma mulher jovem, qualquer coisa entre 30 a 40 anos, e estava lá exposta ao escárnio e ao julgamento de todos. Inclusive os dela. Beatriz chegou ao seu local de trabalho mais afetada do que de costume. Deu bom dia  para o porteiro e pediu um café na cozinha. Tentava se concentrar no trabalho, mas vez ou outra se pegava olhando pelo basculante em direção a tal praça. Ela fecha os olhos com força, respira, tenta pensar em outra coisa e desiste.  Dá um soco na mesa e sai determinada. Atravessa a praça, olha, e a mulher ainda estava lá, agora sentada no banco com a bandeira enrolada no corpo como se fosse uma toalha. Bia segue, atravessa a pista em direção a uma loja de roupas ferminas. Escolhe um bom vestido. Nem o mais caro, nem o mais barato. Comprou também roupas intimas e levou para “a nua da praça”. A mulher avançou em sua direção assim que ela lhe estendeu a sacola; não conseguiu esconder a decepção quando percebeu que não era comida, mas, ainda assim, agradeceu. Bia voltou ao trabalho se sentindo muito melhor. Trabalhou por horas e só no momento de retornar para casa que se lembrou do ocorrido. Olhou na praça tentando ver a moça, já vestida, mas não a encontrou, e, assim, deu de mão e foi para casa. No outro dia! Tudo igual, como antes… A surpresa mesmo foi encontrar, de novo, a moça nua dormindo no banco da praça envolta na bandeira do Brasil. Bia não se conteve, acordou a moça, cobrando-lhe as roupas que  havia lhe dado. Ela, simplesmente, respondeu: 

– Vendi! Estava com fome, não com frio!  

Beatriz não pensou duas vezes atravessou a pista e, novamente, comprou roupas para a moça. Comprou também pão, suco, café e biscoito. E, desta vez, a moça lhe sorriu mais satisfeita, Ao sair do trabalho, Bia corre os  olhos pela praça, mas não a vê. Então! Chegou a outra manhã! Com os obstáculos dela de cada dia, tudo igual…  Até mesmo a moça nua do banco da praça! Sem paciência, Bia já se aproxima, gritando: 

– O que houve com as roupas desta vez?  

– Vendi!  

– De novo? Eu não lhe trouxe algo para comer? 

– A senhora só come uma vez no dia? 

– Não, mas no seu caso é diferente! Você está nua! Uma mulher adulta! Não fica bem. – argumenta. – A senhora está incomodada com a minha nudez?  

– De certa forma, sim! – Respondeu Bia, sinceramente. 

– Ela dói na senhora, né? Mas é só na senhora… Em mim o que dói é a fome! Olha a sua volta, dona? O bebê dela chora à noite, ela não tem mais leite; aquele homem, que vomita todos os dias, tem úlcera e vai morrer  qualquer noite dessas.  

Sem o que responder, Bia vira as costas e segue muda para o seu trabalho. Não anda nem dois metros e ouve a moça chamar. Ela se vira e vê, com espanto, a mulher em pé, nua, sobre o banco. Ela lhe atira a bandeira que lhe cobria a nudez e grita à Beatriz. 

– Nudez não dói, moça! O que dói é a fome! 

Naquele dia, a professora Beatriz levou para dentro da sua escola o aprendizado, que adquiriu na praça, com uma professora que nunca frequentou as faculdades, mas que lhe aplicou a lição que levará para vida! Já retornando para casa, Bia percebe, estendido na calçada, os dois vestidos que dera à mulher nua, ao lado deles um menino grita: 

– Leve os dois por 10 “real”.