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A festa da colheita

Mal clareou o dia e Abílio foi logo levantando e tomando seu banho. Mais tarde ligaria para a prima Savanah para os preparativos da resenha de logo mais. A água que caia do chuveiro sobre seu corpo nu era recebido com euforia e reverência como um bálsamo. O sol daquele primeiro de setembro que tinha acabado de pular para fora, lançava seus raios sobre a fresta do basculante do banheiro e queimava seu corpo, assim como os pelos do primo Elias ao abraçá-lo. Elias era o primo marinheiro que, quando chegava de viagem, procurava sedento Abílio com o pretexto de uma noite de boemia. Naquele primeiro de setembro em que Abílio completava 21 primaveras não seria diferente, pois há sete anos, quando ainda era adolescente, o jovem organizava com a prima Savanah a sua festa da colheita. Sim. Ele tinha sua própria festa da colheita que era no dia do seu aniversário. Havia lido na internet que o hábito dos homens organizarem suas festas da colheita remontava ao neolítico: Ano Novo, Natal, festas caipiras; nada tinha de diferente do Yule norte-europeu, da Saturnália romana, das dionisíacas gregas. Ele decidiria que seu aniversário também entraria nessa dança. Ele que se achava o amor-livre em pessoa, por que não comemorar a data do seu aniversário com uma festa da colheita, já que seu corpo era para matar a fome de amor de tanta gente?! A sala subterrânea da casa onde os primos moravam – que outrora era a biblioteca do avô falecido – era o esconderijo onde as orgias aconteciam.

Eram quatro primos: Abílio, Savanah, Elias e Isack. Os quatro faziam daquela enorme casa uma república familiar de primos, onde os três primeiros reuniam os amigos na sala embaixo do fundo falso da cozinha para entre canapés, salgadinhos, vinhos, cerveja e caipirinha celebrarem todos os prazeres da vida. Mas o pudico Isack não suportava aquilo; estudante de Teologia, achava aquele festival de concupiscência e luxúria uma ameaça a sua conduta ilibada e incorruptível. Mas naquele ano seria diferente. Ele acabaria com aquela pouca vergonha toda e os gemidos de prazer e gozo virariam gemidos de dor e sofrimento para expurgar o delito moral e espiritual que tanto aviltavam a honra daquela casa. Enquanto Abílio saía do banho e se arrumava para ir ao encontro de Savanah e receber Elias, Isack mexia na fiação elétrica da sala subterrânea para que nada desse errado; e quando tudo acontecesse durante a noite da festa da colheita, ele estaria dormindo o sono dos justos. Enfim, chegou o momento da festa, Elias, Abílio e Savanah recebiam os convidados e Isack ia para a cama. A festa rolou solta. Depois do fastio da comida e da embriaguez da bebida, o desejo brotava no coração e no corpo dos anfitriões e dos convidados que se abraçavam e se despiam uns aos outros como num ritual pagão. Todos deixavam de ser seres-humanos e viravam um canal transcendental de liberdade e expansão de consciência. Quando o curto-circuito aconteceu, Abílio possuía Savanah ao mesmo tempo que era possuído por Elias. O fogo tomou rapidamente toda a sala, mas todos ali enxergavam o fogo como uma expansão do calor de seus corpos. Em volta dos três primos-amantes, eles recebiam aquela força da natureza, se deixando tragar por ela com resignação, respeito e amor. Mas o que os quatro primos não sabiam era que o avô havia construído toda aquela casa sobre uma plantação de alfazemas.

No dia seguinte, a fumaça subia pelo fundo falso da cozinha e misturado ao cheiro da carne queimada vinha o cheiro da alfazema. Muito mais que a festa da colheita, o que fazia Isack sofrer era saber que o pecado tinha um cheiro tão doce.