A chama não precisa de testemunhas

Ela não era tão diferente de eu e você, não. era gente como a gente. quer dizer, tem gente que é mais gente e tem que seja quase não-gente, mas eu tô falando de habitar o mundo, sabe? era alguém que com certeza já passou anda na calçada, uma mulher bonita, sabe com bastante…, sabe? Vitalidade. Mas a gente não vê o que a pessoa tá sentido, não mais, não como antigamente. Antigamente nem tinha tanto sentimento assim, era uma coisa ou outra e acabou. Hoje, não dá nem pra ver as coisas mais básicas que a pessoa tá sentido por causa dessas máscaras. Agora as máscaras são literais. Onde já se viu. Enfim, ela não tava bem. Terminou com o namorado. Ninguém sabe bem por quê? Teve gente dizendo que ele era muito novo pra ela, mas sinceramente, só cinco anos de diferença? Cinco anos não é nada, dez anos talvez até seja alguma coisinha. São os tempos. Cada segundo tem que ser útil. Cada momentinho não pode nem ser desperdiçado. E bebe-se café. Não entendo. Essa nova geração nem sabe beber café. Gosta. Mas gosta de qualquer coisa sem gostar de verdade. Onde eu parei? Ah, sim. Teve quem dissesse que quem não queria mais era ela, mas eu também duvido. Rapaz bom pra ela. Não sei o que foi. Tem cara de que foi algo pesado. Aborto, morte na família, algo assim. O que importa é que ela tava com uma coisa consumindo ela, sabe? Sabe quando consome a gente? Então, tava acabando com a coitadinha. E ela botou na cabeça que queria uma bruxa. Que uma bruxa resolvia. Tirava essa coisa ruim que ficou atravessada e que ela não resolveu. Mas tudo que falavam pra ela só parecia balela, até que alguém, o Marquinho – do DP, é esse mesmo, cabelo enroladinho -, falou com ela um nome e aquilo ficou na cabeça. Ariadne. No interior do estado, ali pros lados de Paraty. Só com um hora reservada com quinze dias de antecedência. Ela marcou e foi. Só que calculou mal, porque seguindo as indicações, deixou o carro parado no canto da estrada, isso ali a uns três quilômetros do centro histórico, e entrou mata adentro. Foi andando, andando, andando. E o que eu fico imaginando, é que tinha que tá precisando muito pra continuar, porque passou 15 minutos a mulher anda não tava nem na metade do caminho, cheio de carrapicho na saia. Mas aí é que tá né, esse tempo, ela ficou adentro mato, seguindo um mapa assim bem simples, viu tudo quanto é inseto, ela refletiu sobre a vida né. Quando acontece uma porrada dessas não tem como fugir né, tem que parar e ficar sozinho, o mato é uma boa. Eu acho que esse é o esquema da bruxa. Mortinha de cansado, ela chegou numa tendinha mixuruca com essa tal de Ariadne e a senhora olhou pra ela, falou assim: “Esquece, esquece, aquilo que te queima por fora para poder queimar por dentro.” E quando ela se aproximou a velha continuou: “Queima, queima, mas queima teu fogo para ninguém, não é preciso testemunhas para as chamas.” depois, esticou a mão. A moça pagou. Ficou meio perdida. Mas era só aquilo mesmo. Antes de ir embora, a bruxa ainda falou “Tudo que é esquecido é perdoado.” Olha, parece balela, só um monte de baboseira, mas foi isso. Ela voltou e na segunda-feira, pediu demissão, chamou a atenção de todo mundo ali no editorial e falou que o Sr. Machado era um abusador e que todas as mulheres deviam tomar cuidado com ele. Depois, foi embora e aí, esperando o elevador ela veio pra mim, me deu um abraço, e disse: “Você se liga, hein, que eles também querem te enganar.” Depois, foi embora. E ninguém nunca mais sobre nada sobre ela. Uma palavra, nada. Nunca mais.

Mas ó, isso é segredo, hein! Não conta pra ninguém! O Sr. Machado fica uma fera.