Em memória de Raymundo de Oliveira, meu pai!
Essa história é mais uma daquelas que saíram lá do baú da minha memória. Coisa de longe. Causos que meu bisavô contou pro meu avô que contou para meu pai que contou para mim. No caso dessa passagem verdadeira, meu avô – Natalino Sobrinho, foi o próprio protagonista e, posso dizer, o pai da criança.
Contou-me meu pai que, onde morava quando ainda era criança com a família, era uma cidadezinha legítima do interior de São Paulo. Uma Igrejinha Católica com uma praça sempre em flor, onde os jovens praticavam o “footing”. Onde pelo menos cinco vezes por ano havia quermesses. Um comércio bem sortido, fortalecido pelos imigrantes italianos e asiáticos. Cinema, fórum, uma fonte e um rio que cortava a cidade ao meio com uma ponte de pedra para se atravessar.
Do outro lado da cidade algumas casas dos menos favorecidos (posso assim dizer), algumas bodegas (que orgulhosamente comercializavam cachaça), a famigerada Casa de Recurso e a primeira Igreja “de Crente” da região.
Hoje isso anda meio fora de moda, mas na época de meu avô: assombração era coisa que existia de verdade. E ninguém costumava duvidar de visagem, aparição, mau-olhado, rezadeira. Não! Tudinho, tudinho existia e funcionava tão azeitado como a internet hoje em dia. Ninguém chamava de folclore Saci, Lobisomem, Mula Sem-Cabeça… Desconjuro! Era tudo tão verdade quanto santo no altar.
Pois bem. Certa noite, Seu Clóvis, um açougueiro repugnante – desses que usam uniformes encardidos, mal humorados e com olhar infeliz, que parece odiar banho mesmo após um dia suarento de trabalho, pois bem: esse tipo, estava indo para casa e ao começar a atravessar a ponte viu no outro extremo uma figura sinistra que mancava e que vinha em sua direção rosnando, um rosno grave. Pensou em encarar o desconhecido, mas ao chegar mais perto do medonho, reparou que ele não tinha face. Era liso como um ovo. Nem pensou duas vezes: correu, mas correu tanto, que quase parou na cidade vizinha. E contou o que viu para todo mundo! Ocultando, claro, sua cueca borrada!
Era comum essas histórias assustarem crianças nos alpendres das casas naquela época. Época em que não existia televisão. E que história de mãe ainda era melhor que novela das oito. E rapidamente essa história entre outras começaram a se espalhar pela miúda cidade de meu pai. Outro morador também viu a bisonha figura e só não a enfrentou porque ela tinha chamas ao invés de mãos. Umas senhoras “bíblias” que iam para a igreja do outro lado também foram colocadas para correr pelo “filho de satã”.
A ponte logo passou a ser evitada pelos medrosos moradores da cidade, mas também pelos corajosos amigos de meu vô que foram obrigados a caminhar uma légua até a ponte velha para visitar as primas. O medo da criatura sem cara, que soltava fogo pelas mãos era maior que a preguiça da andança. Meu avô, cabra macho como todos da minha família, nunca teve medo de nada. Gabava-se por já ter visto e nunca corrido de um bocado de assombrações!
Como aquela mulher loira que ele, junto a seu irmão Jacinto, avistou em certa madrugada na beira da estrada e que quando perguntaram o que uma moça tão bonita fazia ali sozinha, àquela hora da noite naquele ermo, viu ela crescer e crescer e crescer, até ficar com mais de sete metros de altura. Meu avô puxou de um crucifixo que trazia no peito e ordenou – em nome de Jesus Cristo Nosso Salvador – que ela voltasse de onde veio e que os deixassem em paz!
E ela foi diminuindo, diminuindo, diminuindo até sumir.
Pois bem. O velho Natalino Sobrinho. Pai de meu pai. Filho de Raimundo de Santa Luzia, não estava nem um pouco assustado com o “Tárrrr Cara d’Ovo”. Meteu sua velha garrucha nas calças, mesmo sabendo que alma do outro mundo pouco se lixa para arma de fogo. Passou no bar do Seu Alaor, tomou uma “É só pra espantar o frio. Espantar o frio da madrugada!”. Beijou o crucifixo e bradou: “Esta noite eu vou atravessar a ponte. Quero ver as meninas na boate de Dona Miranda e assombração qualquer vai me impedir!!” e foi.
Nenhum cristão que estava ali se animou a segui-lo. Nem mesmo curiosidade alguma foi capaz de tirar aqueles amedrontados de dentro do bar.
Contava meu pai, que quando seu pai pisou na ponte, a “coisa” apareceu na outra margem rosnando. Seu Natalino, confiante como uma serpente ao dar o bote, seguiu em sua direção com garrucha na mão e voz de trovão: “Vem, fio de satanás. Vem que estouro sua cabeça sem cara!” e deu dois tiros que – pífios – não acertaram o fantasma, mas assustaram o farsante que tirando a máscara implorou: “Não me mate Natalino! Não me mate Natalino!!! Sou eu, Padre Olavo!!!”. Meu avô assustado e muito nervoso ainda disse: “Homem, eu deveria recarregar a arma e dar mais dois tiros para o senhor virar alma penada de verdade! Só não faço isso, porque seria um pecado! Uma heresia dos infernos matar um padre! Mesmo um padre tão safado assim!”
Padre Olavo explicou para meu avô – que prometeu guardar segredo – que só fez aquilo para assustar as paroquianas que andavam se debandando para a igreja dos crentes. E que jamais voltaria a repetir um gesto tão horrível assim! Vô Natalino ordenou, então, que o padre no dia seguinte rezasse uma missa na ponte como se espantasse a alma do outro mundo, para que o povo pudesse novamente utilizar a ponte sem medo.
Anos mais tarde meu avô já idoso foi morar ao lado de uma igreja evangélica. E diante daquela gritaria danada, diante daquele fanatismo medonho o véio Natalino dizia: “Só me arrependo de não ter deixado o diacho do vigário ter assustado mais essa gente barulhenta naquela ponte!!!”
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