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Desejo escrever uma ficção histórica e ainda não sei bem o porquê. Sei que nada tem a ver com minha graduação em História e meu trabalho como professor que, em última instância, só ocorreram pelo ganha-pão. Também não é para reconstruir um passado político ou reescrever a História de uma maneira mais justa e etc. Minha ficção histórica é da ordem da cegueira e vou tatear o tempo para ver o que encontro.
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Rebobino décadas e de repente acho instigante transportar meu corpo para uma manifestação de moradores de Nova Iguaçu, ocorrida em junho de 1979. A neblina que encobre a Serra de Madureira denuncia uma manhã fria. Três mil pessoas marcham em direção ao prefeito, exigindo asfalto, calçamento, esgoto. E ele, o prefeito, sabe que precisará na pior das hipóteses ouvi-los, pois nunca se vislumbrou tamanha força da classe trabalhadora na cidade.
Paro na lateral da passeata. Estou espremido em frente a uma porta de aço fechada vendo aquele formigueiro passar. É como se eu fosse um gringo observando o desfile das escolas de samba, mas não um gringo espacial, que vive noutro país, e sim um gringo temporal. Algumas meninas segurando uma placa do movimento estudantil pedem que eu chegue pra esquerda, a fim de contemplarem melhor um poema escrito a giz no aço atrás de mim. Eu saio da frente. Em seguida elas suspiram, não sei se apaixonadas pelo poeta marginal ou se pelo desejo que os versos inflamam nelas, seja o que for, tudo isso é tão erótico, tão anos setenta.
A multidão não termina de passar. Colabora para isso os passos lentíssimos, como se quisessem adiar o desejo realizado – desfrutar adiando. É quando vejo um sujeito com um cabelo black power, calça boca de sino, uns vinte e cinco anos e visual motociclista. É meu pai.
Meu pai não faz parte da associação de moradores. Meu pai ganha um bom dinheiro trabalhando com legalização de terrenos na prefeitura. Os terrenos clandestinos que os migrantes compram na cidade, e que necessitavam de infraestrutura, necessitam também de legalização, e meu pai facilita esse processo. Que diabos então faz meu pai numa passeata? Não sei, talvez ele nem estivesse ali e eu o visse porque o queria ver; como também via minha mãe.
Minha mãe: vinte um aninhos, magra, alva, charmosa, meio francesa, embora uma francesa exausta por ter trabalhado no domingo vendendo brinquedos e eletrônicos de última geração, como rádio-despertadores e televisores grandes, nas Lojas Parques da Praça da Liberdade. Ela cruzou com a manifestação enquanto voltava a pé pra casa, quatro quilômetros de caminhada, e talvez também quisesse asfalto na rua pra poder se cansar menos – terra batida aumenta o impacto, doem os joelhos.
Mas meu pai e minha mãe não vão se encontrar ainda. Meses depois, ele vai perder o emprego na prefeitura e iniciar a década de oitenta vendendo limão na porta do Guanabara. Depois ele vai casar com a primeira esposa e ter dois filhos. Exausto da vida de camelô parado, ele será camelô andante, viajando Minas Gerais inteira trocando artigos cariocas, como bonecas e camisas, por ouro mineiro, para enfim se divorciar em 1988 e conhecer minha mãe.
Minha mãe, que teve um noivo com quem nunca casou, que teve um filho com um artesão que trabalhava na Praça da Liberdade, em frente às Lojas Parques e se separou dele, para passar uns anos sozinha, talvez deprimida, e enfim conhecer meu pai, que a levará de Fusca para uma viagem a Bananal, quando irão viver uma lua de mel improvisada, porque nenhum dos dois é afeito a cerimônias. Então eu vou nascer em 1990. Mas é bom estar nascido antes, em junho de 1979, no dia da passeata, e isso eu devo à ficção histórica.
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Um dos problemas que encontrei na escrita deste conto é que minha mãe reclama quando se depara com ela própria em meus contos. Um dia, ela leu uma crônica que escrevi, com reflexões sobre o cotidiano, e me disse: “essa crônica que você escreveu é legal, melhor do que ficar publicando sobre a nossa vida”. “Aquilo é só imaginação, mãe”, eu respondi e desconversei, constrangido. Mas a situação me deixou cheio de culpa, porque a personagem que parecia com ela, era ela mesma. E sendo assim, como publicar esta ficção histórica que descreve o trabalho da minha mãe, suas frustrações amorosas, recomeços, sua pragmática maneira de ver a vida? Como publicar um pai apolítico, rebelde, amante do dinheiro e das liberdades? Penso que eu deveria disfarçar melhor meus personagens. Mas se eu fizer isso, vou odiar o que escrevi, já que a ficção histórica que desejo escrever é a que me leva à juventude dos meus pais. E acho que agora encontrei o que me trouxe a 1979, à meninice dos meus pais – esta ligeira impressão, que eu tinha na infância, de que eles gostavam mais do mundo antes de mim.
4
A multidão se dispersa no fim da manhã, após as promessas inéditas do prefeito. Estão todos aos abraços. “Hoje o dia frio e feliz merece um vinho decente”, um deles comenta. A turba sai em direção ao outro lado de Nova Iguaçu, na região em que ocorriam as bebedeiras. Eu vou na direção contrária.
No caminho, uma Veraneio da Polícia freia quando se aproxima de mim. O automóvel percorre a rua na mesma velocidade que eu. Vejo o militar me encarando. Escapo para um bar. Está cheio e eu peço uma cerveja. A veraneio estaciona. Bato no balcão: “Uma Brahma”. O garoto do bar me serve.
Enquanto me serve, pergunta como estou. Não respondo. Uma gota de suor escorre da minha testa enquanto bebo a cerveja. Olho por cima do ombro e reparo que os dois militares conversam entre si. Sirvo o segundo copo e bebo desesperadamente. Reparo um basculante no banheiro. Se eles entrarem, eu fujo. Vejo os militares anotando coisas. Depois dão partida na Veraneio e saem – pro meu alívio.
Quando dobro a esquina, ouço um novo barulho de motor. Tremo por dentro, porque agora não há bar nenhum. Acho que foi uma emboscada. Olho para os lados, as casas têm muros altos. Então continuo andando, de olhos fechados, preparando o corpo pro impacto do tiro ou coronhada. É quando escuto o agudo de uma buzina. Abro os olhos e vejo um sujeito de black power passando de moto. O sujeito que passa por mim é meu pai. Eu aceno pra ele, ele acena pra mim. Agora só nos veremos onze anos mais tarde, quando eu enfim nascer.
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