Xícara de café

O amargor do açúcar

Como todo dia, acordo e vou a cozinha preparar meu café com açúcar. Não simpatizo com adoçantes artificiais. Gosto das coisas aparentemente naturais. Observo o panorama e silhueta da cidade do alto do apartamento no oitavo andar onde moro, próximo ao centro, onde motos e carros buzinam nervosos. Quebrando os sons cotidianos da cidade motorizada que acorda escuto o latido imprevisto e ininterrupto de um cachorro, possivelmente de porte grande, mas não consigo visualiza-lo. Um uivo, similar ao dos lobos, de lamento, que se repete sem parar e com insistência. Sinto algo estranho dentro de mim, vindo de um animal que pertence possivelmente a um novo vizinho, e que nunca tinha visto. Vasculho com meus olhos a vizinhança lá embaixo. Uma série de casas e moradias simples, misturados com moradias de classe média como se fosse um tabuleiro de xadrez. Não localizo o cão que ladra insistentemente. Mexo em meu copo de café e acrescento mais algum açúcar, talvez para aplacar minha curiosa ansiedade. Minha esposa surge na cozinha, e também percebe o choro do animal, que quebra nossa rotina. Ela lembra que um dos vizinhos, um idoso, que mora numa daquelas casas humildes. Ele tem um cachorro e vários gatos, e que à essa hora da manhã com precisão inglesa, seu vulto recurvado surge em seu quintal, alimentando os bichos. Porém, há alguns dias, o idoso não aparece. Minha esposa só usa açúcar orgânico e defende que faz menos mal à saúde. Especulamos se o cachorro que uiva choroso não estaria sentindo a falta da companhia de seu dono, possivelmente o tal idoso ausente, e por isso estaria latindo por falta de afeto ou alimento. Dou mais alguns goles no café açucarado, mas a lembrança dos latidos e do que estaria levando aquele cão misterioso a latir tanto não me saem da memória. Algo parece roer-me por dentro. Diante do possível sofrimento do cão, sinto um estranho amargo no peito. Há um incomodo latente dentro de mim. Saio de casa e vou ao trabalho. Os dias se passam e em várias manhãs se repete o contínuo incômodo dos uivos dolorosos daquele cão, seguido de especulações que se reforçam pela possibilidade do idoso estar talvez doente, pois ele que sempre surgia pela manhã, para alimentar seus bichos em seu quintal, tinha desaparecido completamente daquele cenário matinal com o qual nos acostumamos por anos. Olho a xícara repleta de café que lança sua fumaça etérea de sua superfície negra fumegante ao misturar o açúcar rodopiando com a colher, observo uma tênue espuma que se forma desenhando algo que sugere o universo em espiral como uma via láctea. Espirais de vidas, de explicações, de conjecturas vis, de sentimentos inócuos… Uivos, gemidos, latidos, um cão, o ser humano que sofre em sua dúvida… Os dias passam, os latidos continuam, mas surpreendentemente, num certo dia, o Idoso reaparece calmo como sempre dando comida aos gatos! Mas e o cachorro? Onde estaria? Os latidos continuavam a me atormentar. Concluo então que minhas lógicas estavam erradas. Confuso, agora descobri que o cachorro não pertencia ao idoso. Retomo a apurar a localização dos latidos, e sem testemunhar a presença do cão, acho agora que os sons viriam de uma case um pouco mais distante. O enigma persiste. Dois dias a mais se passaram até que, quase mecanicamente, vou fazer meu café e percebo que não escuto mais os latidos. Duvidas quase amargas se entrelaçam dentro de mim, pois desejava saber a final dessa história, estúpida e inócua para os demais 7 bilhões de vida do planeta. Três colheres de açúcar bastam. O café agora estava no ponto, e diante de minhas dúvidas, restam somente o silêncio negro e profundo como aquela xícara de café.