– Poeta, chegou sua hora. Vim aqui te buscar.
– Ah, não! Ainda tenho muito o que fazer. Dar aula, compor, organizar o carnaval, pintar, fazer poesia…
– Não tem negociação: deu a hora, deu a hora! Só vim te avisar.
– Como assim? O que eu fiz pra merecer isso?
– Todo dom gera uma resposta. Toda bênção esconde uma maldição. Pra criar tudo isso, pra “viver todas essas vidas”, sua maldição é ir mais cedo, sem aviso prévio.
– Mas isso só pode ser coisa da minha cabeça. Mais uma criação que eu dei forma como vozes na minha cabeça.
– É mesmo? Fale mais sobre isso.
– Vem desde a adolescência. Comecei a escrever em terceira pessoa, a criar pseudônimos, personas diferentes de mim… Ei, por que eu estou respondendo a uma voz que está na minha cabeça?
– Porque você sabe que não é só uma voz. Você é inteligente o suficiente para saber que uma hora acaba. Que todos aqueles personagens que você criou, todas aquelas vidas paralelas as quais você deu voz… vieram te acompanhar no momento final. O gran finale! Seu réquiem!
– Mas quem disse que eu quero ir? Tenho tanto pra fazer, tantas histórias pra criar…
– É, mas para de enrolar. Facilita o meu trabalho e admite que é a ordem natural das coisas. Nasceu, cresceu, viveu e agora acabou. Não tente compreender. Apenas aceite.
– Tá, mas então antes de ir eu quero deixar alguma coisa. Deixar um ponto final.
– Hum, um ponto final. Como seria isso?
– Uma última obra. Lançar meu último livro!
– Hum, não sei. Vai demorar muito. Tenho prazo para entregar sua despedida.
– Mas eu preciso. Não está lá no nosso acordo?
– Ok, ok. Deixo você terminar, mas não lançar. Obra póstuma dá status.
– Não acredito que estou negociando até isso. Um artista não tem dignidade nem para morrer.
– Poeta, você é diamante! Pedra preciosa, mas duuuura. Quanto mais pressão, mais valor tem.
– Dá pra dizer se a obra póstuma vai fazer sucesso?
– Você tem nome de arcanjo. Pode ser portador de notícias boas mas, no seu caso, Rafael foi quem anunciou o Juízo Final.
– É, ainda carrego essa marca.
– Então, vamos colocar uma data final? Dia e hora pra eu vir aqui terminar o meu serviço?
– Terça que vem!
– Terça que vem então.
Mefistófeles aperta a mão e vai embora. O poeta solta um longo suspiro. Senta e começa a escrever uma outra história, onde aquela vozinha perde a aposta e vai embora sem levar nada. Ele escreve, reescreve e, já cansado no fim da madrugada, dorme em cima dos seus escritos. Pobre poeta. Mefistófeles, paciente, aguardava lá fora e vem buscar sua alma antes da hora.
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