Vivos filme

Vésperas

40 mil pés de altura e a fobia de voar parece amenizada. Fora do avião, a segurança de um azul que preenche o céu até desbotar no horizonte – talvez sejam as cordilheiras chegando. Estou tão relaxado que consigo pensar em pedir café e sanduíche, nessa companhia aérea de baixo custo onde tudo é pago. Ainda não troquei reais por pesos. Se não aceitarem moeda brasileira, terei que comer as bananas que sobraram na bagagem de mão. Mas se o câmbio é meu único temor agora, a véspera da viagem foi terrível.

Tive sono cedo. Cinco da tarde, queria dormir. Era para estar organizando as coisas da viagem, um lanche pro voo (algo mais elaborado que quatro bananas), mas o corpo preferia o desânimo. Deitei na cama e me encolhi. Foi então que, mais tranquilo, finalmente consegui dar um nome à angústia que me persegue em vésperas de voos: viajar de avião é uma espécie de castigo; como se eu fosse uma criança travessa à espera do pai que logo chegará em casa para puni-la; como se houvesse um velório de alguém amado para ir acenar adeus; ou ainda, e talvez seja exatamente isso, a sensação que eu tinha de que seria levado pelo velho do saco por causa dos meus erros. 

O que me fez enfrentar? Talvez o custo do voo – o capitalismo, embora disfarce o turismo com uma capa de liberdade, tem na indústria de viagens a sua maior fortuna. Mesmo assim, nos minutos que antecederam a entrada na aeronave, eu voltei à infância, ao voo dos Mamonas Assassinas, ao Gugu falando sobre a fuselagem (odeio essa palavra, fuselagem) do avião na serra da Cantareira; o voo da TAM explodindo sobre as casas paulistanas em 1995. A família na sala vendo essas tragédias e eu, na porta, pensando assim: se todos estão comovidos pela morte dos Mamonas, imagine se fosse eu num avião desses? Não posso, nunca, viajar de avião, senão farei mal à minha família e serei punido, terei que ser punido – levado pelo velho do saco. Alguém que faz sua família chorar por teimosia em subir num meio de transporte que ousa subir aos céus, apesar de suas milhares de toneladas, merece nada menos que ser levado pelo velho do saco. 

Mas depois da decolagem (quando tive a impressão de que o avião daria uma cambalhota pra trás) o voo ficou leve. Houve avisos de turbulência, que geravam um frisson, mas eram só pulinhos, nada diferente de pegar o Nova Iguaçu – Jaceruba da Linave. Lá fora, tudo azul.

Foi então que ouvi a comissária: atenção, todos sentados, vamos atravessar a cordilheira. Nessa hora, veio à mente o filme em que um avião cai sobre os Andes. Os passageiros (que sobreviveram) tiveram que comer uns aos outros. Eu pensei que, porra, se tivesse que cair, que fosse nos pampas argentinos – pelo menos tem gado pra comer. Nos Andes, vai dar merda. Contudo, em pouco tempo, vi as pessoas olhando fascinadas na janela. O avião tremia um pouquinho. Me arrisquei e olhei pra baixo pela primeira vez. Deus do céu, as cordilheiras do andes parecem pinturas surrealistas. Essa foi a arte que veio à minha cabeça, e não o filme de horror baseado em fatos reais, que agora me recordo do nome: Vivos, que passava sempre no SBT.

Aliás, se Vivos foi baseado em fatos reais, talvez um daqueles sobreviventes ainda estivesse lá embaixo, morando no meio das Cordilheiras, perdido no labirinto branco por décadas. Envelhecido, bebendo gelo derretido e comendo insetos (todos os outros passageiros já foram comidos). Será que ele acenou para nosso avião, a fim de ser socorrido? Ou não aceitaria o socorro, tendo em vista que teria que voar outra vez e isso traria à tona seu trauma? Ou quem sabe ele nem acenaria, nem pediria socorro, e estivesse feliz sendo um homem selvagem no meio dos Andes, apesar da pouca variedade de comida – daria qualquer por um alimento tropical, como minhas quatro bananas da bagagem de mão.  

O piloto anuncia que as cordilheiras acabaram e que o pouso em Santiago será em 30 minutos. Agora não tem mais volta. Em uma hora estarei percorrendo as ruas do Chile num Uber. Em uma e meia chegarei ao hotel, antigo e mofado, na parte central da cidade, que é onde gosto de me hospedar. Em duas horas vou sair pra trocar moeda, porque a companhia de baixo custo não aceitou meus reais e ficarei com as míseras bananas no estômago. Então vou sair pra comer. Um bom salmão com batata frita. E vinho. Uma garrafa, só para mim. Tango, rumba e um samba misturado com salsa que é estereótipo do Brasil. Chilenas bonitas, politizadas, com cabelos coloridos. Pessoas em todas as mesas debatendo se aprovam ou rechaçam a nova Constituição pós-Pinochet. Um cheiro de maconha que me faz salivar. Sou um turista feliz. Bêbado e feliz. Cruzei a América do Sul em três horas e meia porque eu desejei – e que se exploda se meia dúzia de burgueses enriquecem às minhas custas. Não é um castigo. Sou eu. Sou eu quem deseja se sentir estranho neste lugar, desligar o celular e não avisar à família se chegou, sou eu quem atravessa o bar trôpego, sou eu quem entra no banheiro para mijar, lavar as mãos e o rosto, tirar a oleosidade da pele que o voo traz, e também sou eu quem se olha no espelho e vê, na própria imagem refletida, um velho barbudo, mal vestido e com um saco nas costas, o qual ele me mostra de relance e eu percebo, aliviado, está vazio, totalmente vazio.