diabo carnaval

Um engano dos diabos

O inferno estava lotado. Mais lotado que os trens da periferia dos anos 80. O diabo estava esgotado de tanto trabalho. A Terra mandava sem fim as almas condenadas, que não conseguiam colocar os pés no céu, pois os pecados não paravam de ocorrer na Terra. Os anjos decaídos do inferno, que eram os operários do inferno, operários do diabo, pressionavam o diabo para reduzir o trabalho de tortura contra aquela multidão de almas penadas. Pleiteavam junto ao sindicato a redução de horas de trabalho. O diabo sentava em seu escritório e consultava seu computador, onde contabilizava o quanto de objetos de tortura, carvão e álcool teria de comprar, os torturadores e ditadores que teria de contratar e teria de pagar. A conta não fechava. O inferno estava com inflação e tudo indicava que a inflação iria aumentar.

Desesperado, o diabo tentou conversar com Deus, mas a agenda do supremo estava muito cheia e o diabo desistiu de esperar. Tinha pressa. Resolveu cair fora do inferno. Na parede, olhou com tristeza para o quadro do artista Bosch, onde vários de seus amigos diabinhos foram pintados no século XVI. Se fantasiou de ser humano e zarpou para a Terra. Chegou em pleno Brasil, no Rio de Janeiro, em plena onda de calor de novembro. Inicialmente sentiu-se bem no calor de 50 graus. Entrou num bloco de carnaval e gostou daquela bagunça, pois lá no inferno imperava a organização. Resolveu tirar sua máscara e a multidão adorou suas feições diabólicas. Mas não durou muito. No meio da confusão, levaram sua carteira e seu celular. Além do mais, o calor se tornou insuportável. Ainda tinha alguns dólares e seu cartão de crédito. Pulou fora. Sentou-se num bar, olhou para uma sirigaita fantasiada de anjo, que piscou para ele, e acabaram se sentando na mesma mesa. Juntos bateram um papo simpático, cheio de risos e sorrisos, e logo saíram pra casa dela. Depois tomaram um drinque e chegaram as vias de fato. Ela elogiou muito a fogosidade dele e logo entraram num sono profundo.

Acordou no dia seguinte com muita dor de cabeça e não viu sua parceira. Além de tudo, viu que seu cartão de crédito e os dólares haviam sumido. Descobriu que tinha caído no golpe “boa noite, Cinderela”. Ligou para a polícia, que demorou horas pra chegar. Quando chegaram, zombaram do diabo e o chamaram de otário. Depois pediram uma gorjeta e, como o diabo não tinha mais qualquer dinheiro, acabou preso por vagabundagem e cafetinagem. Na cadeia “comeu o pão que o diabo amassou”, num calor insuportável, apinhado de marginais, comida de quinta categoria e um monte de caras que quiseram comer seu rabo com batata. Mas como viram que o tal rabo era protegido por uma seta pontuda, desistiram da empreitada.

Após alguns dias, foi dispensado com um belo chute no traseiro e foi pra rua da amargura. Mendigou pelas ruas da cidade maravilhosa atrás de um dinheirinho mínimo que o permitisse sobreviver e sempre foi maltratado pelos transeuntes. Dormiu na beira de um barraco, onde se afeiçoou por um cachorro sarnento que foi seu único amigo na Terra e que o apelidou de cérbero. Diante de uma loja, visualizou os políticos da ocasião numa tela de televisão. Astuto para desvendar e reconhecer os segredos das almas pecaminosas, reconheceu vários deles e sabia que eram grandes canalhas, dignos de um lugar no inferno. Percebeu que a fala deles era toda cheia de mentiras e hipocrisias (o diabo conhecia bem as mentiras), e percebeu que dificilmente conseguiria sair de sua triste condição terrena de miséria em que se encontrava. Pela televisão notou a tristeza das guerras atuais e o sofrimento humano. Passeando pelas ruas, viu num sebo o livro de seu antigo conhecido poeta, o Dante Alighieri, cujo conteúdo de A Divina Comédia conhecia de “cabo-a-rabo” (rabo de diabo). Naquele momento relembrou de seus bons momentos no inferno e bateu aquela saudade. Lembrou que, pelo menos lá, ele se sentia gente. Entrou num bueiro, chegou no inferno sendo então ovacionado e agora finalmente aliviado.