Trabalho de parto

Duas mulheres, em trabalho de parto, cruzam seus destinos no corredor da maternidade de Biamba. Em plena encruzilhada, elas não imaginavam que dariam à luz ao inesperado de si e de seu povo. Era uma encruzilhada aberta à ansiedade, ao medo e à esperança. Havia uma frequência vibratória intensa naquela encruza. Era o limar de um lampejo capaz de suspender as aporias e dúvidas das grávidas. Instantes de poesia vazaram da bolsa d`água esgarçada. A sintonia entre as mães era a condição ímpar para aquela epifania. Dor, desconforto, criatividade, resiliência, e senso de sobrevivência as uniam. Era uma encruzilhada aberta aos sentidos da maternidade para as mulheres que, tão parecidas e tão diferentes, cruzam as rígidas fronteiras que definem seus corpos femininos.

Elas aguardam o primeiro filho. Um se chamará Felicidade, Munanga; o outro se chamará Poder, Imre. O nome dos meninos, Felicidade e Poder, trazia um desafio que rasgava a história de laços impossíveis entre estas crianças; rasgava a história de perseguição sobre seus povos; rasgava as entranhas maternas, para dar passagem ao bebê; rasgava, enfim, o cordão umbilical para que os recém-nascidos respirassem o bem e o mal da humanidade. Quanto mais as contrações aumentavam, mais o passado as assombrava como uma sentença. O trabalho de parto era um marco zero para ambas. Uma coordenada oculta.

A senhora Levi, grávida de nove meses e com dois centímetros de dilatação, chegou ao hospital uma hora depois de Kabenguele, mas foi logo atendida. Kabenguele estava com seis de dilatação e completando nove luas cheias, mas parecia invisível para as enfermeiras e técnicos. Como de hábito de sua cultura, Kabenguele cantarolava preces harmoniosas, enquanto as equipes davam os primeiros atendimentos a Levi. Kabenguele viu, incrédula, os privilégios, pois vários médicos entre obstetras, estagiários, ginecologistas e cardiologistas debruçaram-se sobre a maca. Entender isso como natural é doloroso, inaceitável. Não há morfina capaz de amenizar a revolta de Munanga.  De imediato, Levi recebeu uma injeção de ocitocina para acelerar as contrações e uma anestesia para humanizar o parto. Trabalho de primeira de toda equipe.

As mulheres entreolhavam-se diante das macas emparelhadas. Como num quadro surrealista, o tempo foi distorcido pela maternidade iminente, dispondo-se a revelações. Kabenguele desejava que nunca faltasse alimento para seu filhote, carboidrato e açúcar. E Levi não tinha preocupação com as proteínas e vitaminas, que nunca faltariam a seu filhote. Para as mães, o passado nunca está atrás, mas sempre ao lado como uma lente potente com a qual é possível tramar e cerzir o futuro de seus filhos. Cada um haveria de conseguir os meios de sobreviver às teias perversas da invisibilidade e da perseguição. Difícil seria, o filho de Levi não se convencer das mazelas de Munanga, os codinomes como infausto, funesto e lutuoso que os séculos lhe atribuíam. Assim, a inferioridade e o silêncio são uma tradição desafortunada desde os primórdios da humanidade.

O avô de Imre deixou testemunhos, para que seus herdeiros criassem uma rede de proteção e manter Adolfo Nazista, suas ideias e ações no passado. O avô de Munanga, o velho Giramundo, deixou um legado, no próprio corpo, para que seus descendentes fossem ensinados de que a culpa de sua dor é daquele que deve ser mantido no passado, Leopoldo do Congo. Se não fossem as contingências de suas narrativas, Imre poderia ensinar Munanga a se convencer de que a culpa dos abusos é do abusador. E Munanga poderia ensinar Imre que a dispersão de seu povo é igualmente tenebrosa…  Afinal, o bisavô de ambos morreu como gado abatido, um pela câmara de gás, em Auschwitz, depois de arrancarem o ouro de seus dentes, o outro pelo facão mutilando mãos como troféus. Tudo é pior. Estas ideias doíam mais que as dilatações. As mães pensavam como garantiriam a sobrevivência de seus rebentos. Como lhes protegeriam? E de novo, o marco zero, o trabalho de parto, lhes sussurra, o tempo distorcido não permite que a memória do holocausto se apague sem sentido para as nossas gentes. Em plena encruza darão à luz ao inesperado… Estranhas palavras.

Séculos de perseguições se passaram pela cabeça de Levi e Kabenguele. Seus filhos Imre e Munanga coroaram. Eram a Felicidade e o Poder fazendo-as nascer como mãe. Levi tinha a opção de voltar para Israel, para um Estado forte em manter vivas as memórias dos judeus. A opção de Kabenguele era voltar para a sua aldeia onde todos mantêm vivas as contações de histórias sobre a força dos povos do Congo ou vir para o Brasil, um Estado forte em manter viva a cordialidade, o apagamento da memória e a negação do holocausto. As dores de Kabenguele são intensas, pois deu à luz sem anestesia em seu corte perineal, mas estava muito feliz com a superação e com os desafios da maternidade que, para seu povo, é função de toda aldeia. As mães, em plena encruzilhada aberta, deram a luz sobre o passado de genocídio sobre seus povos.