Todas as mulheres numa leoa só

Sou agora uma mulher que escreve no celular sentada no chão limpo, mas ao lado do vaso, escondida da infelicidade que é um dia nublado de junho, mas tudo bem, eu disse pra todo mundo que perguntou que eu tô bem, tô feliz. Mas não sou essa mulher. Primeiro, volto mais de vinte anos, ele veio com o olhar cafajeste, o papinho sobre habilidades inúteis e disse que associar pessoas com animais sempre deu certo na vida dele e eu logo respondendo que ele tinha que escolher muito bem um animal pra mim e, veja bem, rapaz, eu tenho a habilidade inútil de acertar as horas de qualquer momento do dia e pode estar na hora de decidir se você é pra não ou talvez. Chutei mentalmente mais dez minutos e acertei, porque foi isso que demorou pro primeiro beijo.

Chutei menos de um ano pra ser surpreendida com notícia bombástica e sim, estava gostoso, eu gemia com os músculos da virilha dormentes e ele gozou dentro. Fiquei puta, com remorso, acostumei com a ideia, fui cobrar o safado, ele fez promessas, eu acreditei, fiquei eufórica, mamãe foi linha dura junto do papai e casamos quase obrigados por um amor de porcelana. Depois vieram as dores, os desejos por geleia de amora com sardinha crua, falta de posição pra dormir e eu pensando que era um inferno, que meu corpo ia voltar ao normal.

Bom, voltando pro dia de hoje, tem um espelho longo e me pega sentada, vejo meu pé limpo e magricela, já a barriga flácida e a marca da cesariana quando eu queria que tivesse sido normal. Explodiram fogos dentro de mim, essa é a minha definição de gravidez. Fogos são bonitos pra quem vê e doloridos pra quem tá dentro. Meu filho explodiu meu corpo, meu choro, meus sonhos de estudar arquitetura na UERJ, meu sonho de construir uma família feliz, porque o pai não aguentou o pé na bunda que eu dei depois de tanta canalhice com secretárias, vizinhas e até amigas minhas, tanto que passou a viver de sombra. Desisti de pedir pensão, arregacei as mangas e fui me resolver com o mundo.

Teve época de ter três empregos entre lavar banheiros de escritório, fazer de diarista em casa de parente mais endireitada e vender perfume pras conhecidas. Nunca trabalhei em lugar que tinha pé direito alto, nunca foi em lugar bem construído, mas trabalhei mesmo assim. Tudo pra poder sustentar um filho que aos doze me xingou de filha da puta, aos dezessete, quase dezoito, começou a ter olhos vermelhos e pegar dinheiro escondido da minha bolsa e aos vinte e um apareceu com a ideia de que tinha passado pra uma faculdade.

Daí ficou inteligente de vez, passou a querer conversar e me chamar de burra porque eu não entendia nada de lugar de fala, representatividade e luta de classe. Não sei quem é Foucault, sei quem é Alexandre Pires. O que quero dizer é que eu era uma mulher antes daquele bendito bar, daquele bendito diálogo sobre habilidades inúteis. Ter um filho foi o meu fim.

Poderia ter feito faculdade, ter tido uma carreira, ter estado mais presente e dado um pai descente pro meu filho. Ou não. Abraçada ao vaso sanitário eu capoto mais um enjoo e não, não estou grávida de novo. Estou com enxaqueca, botando os bofes pra fora de tanto que comemorei ontem de noite porque sim, foram três tequilas e sei lá quantas latas pra gritar pro mundo que depois de todo fim tem um recomeço e essa doméstica aqui será arquiteta. Passei pra UFF. Ah, sabe qual animal que aquele canalha pôs pra mim naquela primeira conversa? Gata. Ou gatinha. Acertou a família, só errou o parente. Sou ariana, sou freudiana, sou sem sutiã, sou anciã, sem desaforo, não sou mansa gata, sou é leoa que come touro.