Sangue sobre tela – Arte conceitual

Escrivão da polícia

Vejam só este caso doido que aconteceu comigo: Creio que ele decidira ir lá falar no confessionário para que Deus soubesse do seu martírio, pois, é consenso Dele saber de todas as coisas, mas, também, e é coisa certa entre os cristãos, a estranha necessidade daquele rito de comunicação ao Pai através dos ouvidos de um padre. Talvez ele sequer fosse devoto, mas quisesse que alguém – ainda que fosse um simples sacristão, quem sabe – o socorresse do inferno; ou, por sorte, conseguisse despistar aqueles algozes mercenários que já vinham, e há tempos, em seu encalço. “O sagrado e o profano caminham juntos!” – É o que dizem por aí. Por bem ou por mal, ele adentrara com todas as banhas naquela igreja. Tivera azar, pois fora se confessar logo pra mim que nem religioso sou. Sou escrivão de polícia e sim, costumo ouvir muita merda, mas, tive outro motivo nada oficial e muito menos ecumênico para estar ali: a necessidade de tirar um cochilo pra apaziguar as minhas entranhas depois de um desvario de divagações conflituosas entre teses existenciais e bebedeira. Após goles e goles de cachaça e um não sei quanto de teorias das mais estapafúrdias que, em dado momento, tudo parecia girar e já não se sabia o que estonteava mais a mente, se o excesso de pinga ou a escassez de palavras de confessor.

Enfim, ouvi aquilo tudo calado, observando-lhe saindo daquela forma mole e obesa. Por curiosidade decidi segui-lo à distância, mas não pude ver aquele seu desfecho brutal, logo me deparando com um corpo estendido na calçada. Reconheci-o. Era o tal sujeito que mal terminara de me contar alguns de seus recentes segredos cabeludos, coisas de dívidas com um agiota miliciano, blábláblá… Fora estripado, numa imagem hedionda de se ver. E, antes, havia um rastro sanguinolento o precedendo, iniciando no chão do primeiro pavimento lateral que dava acesso a sacristia e seguindo pra rua, a tudo empesteando com detalhes asquerosos e sangrentos: pisos; paredes; degraus… até a calçada, demonstrando que fora esfaqueado ainda no átrio da igreja. Fizeram-lhe um belo corte transversal no abdômen, que, com os seus bofes pra fora, se arrastara até sucumbir no meio da calçada se estrebuchando em decúbito dorsal. Cobriram aquele corpanzil com um grande pano de algodão que costuma cobrir a estátua do santo padroeiro. Desviei o meu olhar ao Santo… São Sebastião, com o seu torso desnudo e flechado, continuava plácido em seu suplício eterno. Por alguma ilusão de ótica ou reação etílica, vi o seu olhar prenhe se revirando, parecendo velar aquele defunto. Em torno do imenso corpo inânime, banhas e vísceras escorriam para o centro de daquele tecido pálido estendido como uma tela em branco pronta para ser pintada – ao menos pra mim assim se revelaram aquelas imagens colhidas em meu celular: “Os fluídos iam se espalhando em cores degrades e escoando pelos cantos do tecido, serpenteando pelo mosaico de pedrinhas portuguesas, meio-fio e bueiro… algum dia alcançaria o mar e serviria de alimento aos plânctons, com toda a certeza.” – Ainda confabulava intimamente, quando senti algo vibrando no meu ser. Alguém me ligava. Era o inspetor Braz…

            Aquele corpanzil inerte fora encontrado às 23h daquela noite fatídica e tristonha de uma terça qualquer. E o Braz, já ali presente, resolveu me pegar pra santo ou bucha, querendo saber do que eu sabia. Justamente, segundo ele, naquela que deveria ter um réquiem memorável, ao menos pra ele, já que necessitava, “como o ar que respira”, de terminá-la aos conformes, ansiando pelo segundo pão Sírio com um patacão de carnes. Assim falou enquanto ainda ruminava o primeiro: “Você sabe?!” Ele me perguntava retoricamente, agarrando-me pela gola com as suas duas mãos lambrecadas de molhos a me lambuzar a camisa, ao mesmo tempo em que ia ajeitando o meu colarinho numa tentativa vã de recompor a desordem original e acabando por melecá-la ainda mais. Prosseguiria o seu estranho interrogatório, que me parecia ser tomado ao avesso, já que somente ele falava: “Que nem aqueles sandubas irados…” – dizia-o tentando desenhar com as mãos o feitio rotundo da guloseima – “que se vendem em esquinas sujas!”. É que, logo na outra calçada da praça em frente à igreja, há aquele quiosque enferrujado cercado por algumas mesas e cadeiras bambas, repletas de fregueses famintos que pareciam homenagear o astro da noite, enquanto observavam o labor da perícia técnica. Aguardávamos ansiosos do nosso posto, assistindo, um olho no defunto, e outro lá pro interior do negócio – mais para a criatura do que para o criador. Havia uma parca luzinha ao centro incidindo sobre ele, o prato principal! Como uma espécie de totem de gastronomia duvidosa, fincado numa estaca de aço e rodeado de pontos incandescentes, o imenso bólido carnoso se apresentava diante daquela plateia sádica a reverenciá-lo. Em movimentos sempre giratórios e a espalhar toda a sorte de odores e rebrilhos de um caldo gosmento que ia lhe escorrendo pelas bordas, estava o tal toretão amontoado de tiras gordurosas sobrepostas e paçocadas umas sobre as outras, que o seu escultor, manuseando, com a maestria de um toureiro, a mesma faca mal lavada, seguia lhe raspando as beirinhas suculentas envolvendo todo o besuntado num pão…  Enfim, chegou o nosso pedido. Ao me assistirem mordendo aquilo tudo com tamanha avidez; quando aquela minha mordida babada parecia ser dada em câmera lenta, todas as bocas mordiam o ar me acompanhando… Todos por lá também pareciam babar. E ele sem me deixar falar um ai. E eu só balançava a cabeça afirmando-lhe tudo. Prosseguiu: “Devia, então, deixar o meu pra outro dia?! Deixá-lo ali pela metade!? Claro que não, afinal, pensei, o caso estava ali em frente. Quando aqui cheguei bateu a fome e já fui ver o defunto. Com fome fico puto, viro o cão! Vi, de cara, que tinha  um bando de bêbados, prostitutas e curiosos em derredor do cadáver e fui chegando e afastando uns e outros… até chutei um cachorrinho que mordia o próprio rabo. Depois até senti pena, mas o bicho não arredava. ‘É assim que relatarei a ocorrência aos superiores.’ Aos costumes… Sabe…” –  E já conversava comigo como se eu fosse o seu parceiro eterno – “Sabe a tal expressão em latim ‘sine-qua-non? Ao menos, já ouviu falar dela?! Pois é, trocando em miúdos, falando em português é: ‘sem a qual não’?! É como se fosse uma coisa tão visceral, tão essencial, que sem ela nada passa a ser. Meu camarada! Sabe lá o que é isso?!  É algo assim como um cão, mesmo sem saber do porque da vontade de morder o próprio rabo. Talvez seja a necessidade de olhar para o rabo dos outros… Aí é que a gente se percebe carecedor de tudo na vida: de olhos pra ver, de uma calda para balançar e até de uma bocarra pra morder.”

Ele interrompeu momentaneamente o seu monólogo olhando para a volumosa panturrilha exposta do cadáver– todo o resto havia sido coberto pelo lençol improvisado -, olhava pra perna e, depois, pro pão; ora pra um ora pra outra. – “Não tem como não associá-las!’” – Sussurrou-me, nauseabundo, limpando os lábios na manga do seu paletó surrado.