Cirurgia ficção científica

Rapadura é doce, mas não é mole não

Era sufocante. Na proximidade dos corpos, um caleidoscópio olfativo. Desodorantes vencidos, Alfazema, Charisma e o suor de um corpo cansado num fim de tarde de verão. A cada estação um entra e sai de ambulantes. Chegando em Nova Iguaçu, não saiu, foi empurrado pela multidão. Um verdadeiro tsunami humano.

Paulo abriu os olhos e suspirou profundamente. Deitado no quarto do hospital, tentou sentar-se na cama, mas uma súbita vertigem o fez mudar de opinião. E a forte dor de cabeça, parecia até ressaca dos seus tempos de juventude. A cadeira vazia ao lado da cama intensificou a solidão que sentia no peito. E se morresse , quem sentiria sua falta? Quem herdaria sua fortuna? Não passou muito tempo, a equipe médica apareceu. Examinou suas pupilas e analisaram os dados dos aparelhos ao lado da cama. Após o cumprimento inicial, Paulo perguntou:

-E então doutor, tudo correu bem no procedimento? – mas alguma coisa no olhar do médico chefe chamou sua atenção.
-Paulo- começou a dizer o médico- não temos boas notícias.
-Como assim?
-Somos pioneiros na reprogramação de memórias. Nunca tivemos queixas de nossos clientes. Mas infelizmente- pigarreou o médico chefe- O procedimento não ocorreu conforme o previsto.
-Que tipo de problema, doutor? – a voz de Paulo foi mais incisiva – O senhor disse que era cem por cento seguro.
-Bem, ahn, sim. Realmente é, digo era seguro. Nossa tecnologia é de ponta. Fazemos as inserções de memórias selecionadas pelos nossos pacientes, sempre obtendo êxito. Porém, tivemos uma invasão em nosso sistema gerador de memórias. Hackers bioterroristas fizeram uma troca na estrutura das memórias, substituindo-as por outras que não foram criadas por nós. Somente ontem é que começamos a perceber o ocorrido, quando os pacientes atendidos na segunda começaram a entrar em contato conosco.
-Só um instante, doutor. Quer dizer que estou com outras memórias, é isso? – perguntou atônito o empresário ligado ao ramo dos transportes.
-Infelizmente sim, Seu Paulo.
-Se o problema é esse, é só desfazer o trabalho malfeito que vocês fizeram. Tirar e depois colocar as lembranças certas. – E acrescentou: sem nenhum acréscimo. Paulo percebeu o jogo de olhares entre os médicos. Estaria cismado, vendo coisas?
-Paulo, nossa intenção era realmente essa. Mas os criminosos modificaram as ondas neuronais e por isso estas lembranças não podem ser retiradas. Tentamos. Há uma reação do cérebro recusando a inserção ou a retirada de memórias. No momento não podemos fazer nada. Lamento.
-Afinal de contas, que memórias são essas que tenho agora? Os médicos se entreolharam. Dessa vez, foi o mais novo que respondeu:
-Ainda não podemos dizer pois os códigos intercomplexos não foram decifrados pela nossa equipe. Creio que dentro de 5 dias mais ou menos, você vai reconhecer estas lembranças. A empresa devolveu o valor da cirurgia, mas Paulo ainda estava revoltado. Ganancioso, pensou o quanto poderia conseguir processando a empresa.

As lembranças começaram primeiro em sonhos. Depois em flashes, acordado mesmo. Pau de arara, umidade da pequena quitinete, corrida para pegar o Geneciano, chegar em Nova Iguaçu e pegar o Japeri para chegar à Central. Cheiro de marmita azeda. Cimento, massa, parede. Apartamento. Resolveu ir à Feira de São Cristóvão e sentiu-se em casa. Provou um baião de dois e uma cachaça arretada que queimava sua garganta. Foi lá que conheceu Luzia Gomes e arriscou até um forró. Sentiu a alma doce como rapadura. E sorriu, como há muito tempo não sorria.