Pescoço

Um pé-de-cabra ensanguentado no chão. A lua no céu só impede a completa escuridão.

O PM encosta a pistola na nuca do homem ajoelhado. Primeiro, ameaça. Depois, retira a mordaça. O meliante pede misericórdia e chora, mas a televisão ligada em algum lugar encobre o barulho. A morte de uma menina de oito anos baleada no Rio de Janeiro provocou indignação e protestos.

Não me mata, por favor, eu tenho família. 

Aquela voz lhe soa familiar: quando era criança, seu irmão o defendera de um cachorro de rua. Eram gêmeos idênticos exceto pela marca dos dentes no pescoço do irmão. O pm fica paralisado, quem dispara é seu coração: a cicatriz está lá. Na pele preta. Iluminada pela luz da lua. Sua mão treme.

O revólver na nuca de seu irmão gêmeo era como um revólver na própria nuca. Ele abaixa a arma, retira a corda. O irmão se solta e vira. Eles se olham. O PM segura a vontade de chorar.

Tudo que queria era voltar atrás. Ensanguentado, mal pago, fazendo correr o próprio sangue no chão da favela. Ele não mais se parecia com o irmão, mas sim com o inimigo; e o irmão que há pouco se parecia com o inimigo agora o fazia lembrar de proteção. Sua cabeça se perdeu num tempo em que seu maior medo era o cachorro do vizinho.

O PM sente saudade. O pé-de-cabra atinge seu rosto. Ele cai. Seu irmão gêmeo levanta ofegante e pisa em seu pescoço. Ele tenta falar, mas tudo que se ouve é o boa noite de William Bonner e dois garotinhos brincando na rua de trás.