O Olho de Belize leu

O Olho de Belize leu: “Exu no Paço Imperial”, da escritora Elisabete Nascimento

Olá, leitores!

Embora este site tenha passado por alguns recortes e ajustes neste meio tempo de parada, existem eixos que não tenho a menor pretensão de abandonar. Um destes eixos é falar sobre a Baixada Fluminense e trazer para cá autores deste território, minha raiz. Quem cuida de sua raiz, mantém sua árvore de pé, foi o aprendi na primeira literatura da vida: a oralidade de minha avó.

Pensar nos ancestrais, como também ter por eles respeito e culto, vem de uma influência forte da presença afro-brasileira na minha escrita crítica, como pertencente a um território composto de negros, nordestinos, mulheres, retirantes, lavadeiras, trabalhadores braçais, os quais foram e ainda são escravizados por um elite, uma oligarquia atrasada e cruel representantes da história oficial, que acredita em descobrimentos, miscigenação e que racismo não existe.

Tudo isso conhecemos.

E é impossível escrever no território da Baixada, ainda que seja com um cabedal europeu de teoria e filosofia, sem pensar em como construir uma perspectiva outra, sem contar uma herança e uma ancestralidade em tudo oposta aos ensinamentos recebidos pelas instituições.

Elisabete Nascimento é um exemplo de escritora que consegue caminhar por esses eixos, com maestria. Nascida e moradora da Baixada Fluminense, do município de São João de Meriti, é Doutora em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2004), com uma tese sobre Mia Couto e a poética do Estado-nação moçambicano em “O último voo do flamingo”.

Dentre suas obras, escreveu Exu no Paço Imperial, livro de contos que, embora construído com narrativas separadas, todas elas se entrecruzam, narrando por além das entrelinhas, histórias que se completam entre si, sem fechamento de caminhos, muito pelo contrário.

O livro é aberto com o primeiro conto que dá título também ao livro e nos embarca já na vertiginosa caminhada de José Caetano de Silva Coutinho chamado Enú-gbárijo, ou o princípio da comunicação, segundo o narrador. Esta figura narradora, que apresenta os personagens e os acontecimentos, adjetiva-os sem afetação, trazendo para a narrativa um tom de oralidade, de respeito e de encanto para o leitor. Como aquele que apresenta as teias da oralidade, o narrador alerta ao leitor de que a atenção é o primeiro passo, o segundo é o silêncio, para caminharmos pelas veredas destas histórias.

É também preciso apresentar o eixo do livro, a figura de Exu, orixá de mil descrições e sagacidades como aquele viabiliza os entrecruzamentos e a maneira como “as histórias ventavam”, segundo o narrador. O personagem José Caetano, “sedutoramente especial”, ex-seminarista e morador de rua tem uma revelação dominical: descobre homônimos que provocariam um cisma, caso de incêndio e amnésia. A partir daí, acompanharemos o percurso de José: sair de Vilar dos Telles, em São João de Meriti e chegar até o Arco dos Telles, no centro do Rio de Janeiro, “cuja residência ainda preserva às massas o acesso em forma de arco para a Travessa do Comércio até a Lapa dos Mercadores. Diante da Praça, cruzou a Rua da Cruz, atual ouvidor, em direção ao terreiro.”

No entanto, volta a pergunta: quem é Exu? E, sabendo que toda linha, pauta e letra ainda será pouca e nenhuma para explicá-lo, ele é o Inexplicável, creio que o que se pode dizer é do tamanho de um grão de arroz e jamais poderemos compreender Aquele que matou o pássaro ontem com a pedra que só hoje atirou. Deixo aqui o meu Laroiê, antes de continuar e um link para os desavisados, de um documentário chamado A Boca do Mundo, para só depois continuar essa escrita.

Exu acha graça do que não tem graça

O caminho de Exu é torto

Exu grita alto

Exu é quem ri por último

Exu é que faz impossível com facilidade

Orixá Exu, na minha casa há um bom lugar pra ti

Laroiê, Exu!

Exu é Mojubá!

Contradicções

Como uma vertigem de rodar no santo, como uma caminhada embriagada e como, ao mesmo tempo, estar tão lúcido que o mundo parece invertido: as certezas são incertezas, o erro acerto, o acerto erro.

As palavras no conto de Elisabete tomadas pelas entrelinhas da vertigem que o oriki traz em suas dubiedades e que a poesia transtorna em nossa língua de truncados focos choca-se com as tradições, principalmente católicas, que na fundação do país pregavam o que era oposto às leis das encruzilhadas: solidão, abstinência, castidade e abstinência da carne. Exu é oposição, é de uma embriaguez composta pelo dionisíaco, trazido também por outro conto Dionísio Julio Ribeiro procura Ossaim.

É preciso, com a ajuda inclusive das estratégias da Pedagogia das encruzilhadas, invenção de força e beleza do Luiz Rufino e Luis Antonio Simas, que o nosso país aprenda e apreenda que o dialógico, o polifônico do russo Bakhtin é mais do que uma estratégia e uma teoria, assim como a antropofagia de 22 , o candomblé, a encantaria, a umbanda e o tambor de mina – tudo isso é também Brasil, é fogo e impavidez de um povo que não participou das decisões de criação desse território. E, por isso, inventou o seu e tomou tudo: rua, encruza, rio, pedra, mar e céu.

É o povo do quilombo, da senzala, vivendo na brecha, no morro, na baixada. Andando de trem e louvando a Bara e Xoroquê, e que atualmente é espezinhado pela construção ideológica neopentecostalmente criminosa que se aproveita de um abandono estatal, para violentar e quebrar terreiros, choças, casas, templos de caboclos, pretos-velhos, exus, pombagiras.

Através do discurso monológico, constroem o medo e baseiam-se em inquisições, malleficaruns, tenebrosas histórias pra boi dormir. Exu não é o diabo deles. Como figura representativa da liberdade, Exu não serve a ninguém. Não obedece, não abaixa a cabeça. Brinca, debocha, vive eternamente na pedra, no fogo, na comida, na terra, no tudo. No nada. Na medida que é desrespeitado, desrespeita. Na medida que é amado, ama. Intenso, incapturável, impossível de se encarcerar – falamos com ele em qualquer lugar porque em qualquer lugar ele está. Vento, folha, rio, passagem, luz e trevas. No escuro, é o que liberta do medo. Da luz, é a sombra que refresca e impossibilita o discurso único, totalitário, totalizante.

É a encruzilhada sua morada porque vemos nela a sobrevivência de todos os caminhos que afluem. As histórias contadas sobrevivem em seus diálogos e detalhes, em suas pertinências de pele, corpo, matizes e nuances de povos, mulheres, homens, crianças, divindades que pisaram nesta Terra e pisaram ainda pela eternidade através de nossa fé, nossa esperança, nossa memória.

Ao trazer para as páginas de seus livros os diálogos possíveis e impossíveis com a tradição literária do conto, da narrativa, dos gregos, romanos, seus deuses, mitos, mistérios, personagens, Elisabete traz Exu para a cena na abertura como aquele a qual pertencem todos os inícios e fins. Finalidades e começos, aberturas e finalizações. Aquele que é a Boca do Mundo e fala, conversa, discute, grita, ri e jamais silencia, ainda que no silêncio da história única. Exu é o que escova a contrapelo a língua tirânica, queimando de fogo a palavra enredada, ardendo feito pimenta a mentira deslavada.

O livro de Elisabete em toda sua estrutura segue e celebra a narrativa, a língua e o idioma nosso, língua portuguesa, raiz latina, e traz como vínculo indelével a maior criatividade da escrita: o pertencimento absoluto a oralidade e seus entrecruzamentos.

Isso é grande, é sertão, é baixada, são as veredas das linguagens que ela pinta, escreve e abraça.

Obrigada, Elisabete, por este livro. Símbolo de justiça e liberdade entre o artista e sua língua, presença de Exu como vida, língua, fogo e, sobretudo, Arte.

Mariana Belize

Mariana Belize, que criou e escreve no Projeto Literário Olho de Belize, é mestranda em Literatura Brasileira pelo Programa de Letras vernáculas da UFRJ. Formada em Letras – Língua Portuguesa/ Literaturas – da UFRRJ – Nova Iguaçu Escreve resenhas críticas com base nos seus estudos de Crítica e Teoria Literária com base na Estética da Recepção e estudos sobre a relação entre arte e vida.