bola campo

O jogo final

O jogo do final da semana prometia incendiar o estádio do Maracanã. As duas principais torcidas rivais iriam se encontrar. O jogo, e tudo que cercava o final do campeonato, fazia os corações palpitarem numa expectativa sem palavras. O estádio tinha capacidade para duzentas mil
pessoas, mas ao que tudo indicava, esse imenso estádio seria pequeno para aqueles torcedores que dariam tudo para assistir ao “maior jogo do mundo”.

No dia, milhares de torcedores saíram de vários locais da cidade e se dirigiram para aquele “útero do futebol “, onde a bola seria
soberana. De carro, ônibus e trem, as pessoas se acotovelavam para tentar chegar antes dos outros e pegar um lugar privilegiado, como assistentes-espectadores daquela disputa da grande final. As catracas não paravam de rodar, até que a força da multidão ansiosa e
enfurecida quebrou todos os limites do aparelho, que rodopiava sem parar durante a passagem da “massa ensandecida”, quase como se fosse um ventilador. As hordas subiam as rampas do estádio como se fossem componentes de um rio de gente, que seguia uma corrente sem
sentido, penetrando túneis, buracos e trompas. O número de torcedores já chegava aos trezentos mil e alguns já davam por certo que uma catástrofe iria ocorrer. O calor do verão, a angústia do povo espremido, geravam gemidos, empurrões, xingamentos, desmaios, dedos
ameaçadores contra os outros torcedores e vociferavam contra Deus. O gramado verde claro iluminado por um sol escaldante, com sua calma vegetal, fazia o contraste diante da fúria do povo nas arquibancadas.

Um murmúrio dominava o ambiente até que o juiz veio trazer a bola e posicionou-a no centro do grande círculo. Um silêncio sepulcral hipnotizou a massa, que olhava para aquela pequena esfera branca e brilhosa que sobressaía sobre o gramado esverdeado. De súbito, o olhar dos torcedores se transformou num transe extático; com suas bocas idiotizadas e entreabertas, babavam saliva, como epiléticos. Esse momento era de puro desejo, de fome de bola, que se parecia com o olhar do “cracudo”, do faminto, ou talvez, mais parecendo com o olhar de milhares de zumbis. Diante da massa de zumbis, os jogadores pressentiram o pior.

Aos poucos, os torcedores dentro do útero foram se tornando mais e mais frenéticos, vibrando como uma máquina, e foram se transformando e se metamorfoseando em verdadeiros espermatozoides! Sim, se tornaram espermatozoides gigantes! O “grande útero”, muito caliente, começou a entrar em espasmos convulsivos. A bola minúscula desejada por todos os trezentos mil se tornou um grande óvulo gelatinoso, com uma densidade como se fosse um enorme ovo cozido deslizando lento, sedutor e elegante. Desfilava como uma Gisele Bündchen oval, num palco de desfile de moda, de um lado para o outro do campo. Ocorreu então o espasmo final (a imprensa diante da epopeia ocorrida chamou esse momento de orgasmo), onde os trezentos mil invadiram e penetraram dentro do campo. O grande óvulo saiu correndo (ou melhor, rolando) cercado pelos trezentos mil penetras vindos de todas as direções. Sabendo-se desejada por todos, a bola não sabia para onde correr, rodopiou como uma bailarina tonta, e resolveu se aninhar escondida no fundo do gol, esperando ser comida pela horda frenética. Enquanto isso, os milhares de torcedores-espermatozoides, ensandecidos de cegueira, de paixão e desejo, começaram a se digladiar e, furiosos, disputando o espaço para chegar até ao gol final, mataram-se entre si, deixando um rastro de mortes inomináveis. O grande útero continuava apresentando crises convulsivas. Os que sobreviveram penetraram a grande área, continuaram a se matar, até que poucos chegaram a pequena área, e somente um deles entrou e ultrapassou a linha do gol. Piscou para a bola-óvulo, percebendo e sentindo uma atração e reciprocidade. Foi de mansinho até que se aproximou da bola-óvulo no final do gol, sendo aceito. Se aconchegaram um ao outro. No final, um grande urro ecoou por todo o estádio, que logo se aquietou lânguido sobre o gramado.