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Noite sem estrelas

Naquela noite, o céu estava mais estrelado do que nunca. Para Júlio, era nítida a impressão de que, bem acima de suas cabeças, alguém tinha reunido todos os complexos urbanos do planeta. Na verdade, era como se todas as luzes, de todos os barracos, de todas as favelas do mundo estivessem acesas ao mesmo tempo. Bruno concordou. Ali do alto do morro a imagem era ainda mais incrível, com a abóbada iluminada parecendo tão perto deles. E acrescentou ao amigo que, se podia existir tanta luz e beleza no universo, qualquer coisa lhes seria possível. 

Nesse dia, Júlio Justo e Bruno Bravo ainda contavam com dez anos de idade. Eram quase irmãos, já que, ao contrário dos outros garotos dali, viviam como filhos únicos. Dona Maria, a mãe de Júlio, quase morreu em seu parto. Apesar de ter sobrevivido, nunca mais conseguiu engravidar. 

Já Dona Ana, mãe de Bruno, nunca achou o corpo de Breno, seu filho mais velho. Ouviu rumores de que ele ficou devendo e, como se recusou a participar do movimento para pagar sua dívida, a execução do débito se deu da forma mais definitiva. A família jamais acreditou nesta versão, já que o rapaz, desde cedo, era muito trabalhador. Davam mais crédito a outros comentários, de que Breno se envolveu com a mulher do chefe local. Fato é que a morte do jovem era dada como certa.

O desaparecimento do irmão marcou Bruno desde muito cedo. Bravo dizia que se tornaria poderoso e acabaria com aqueles marginais. Já Júlio não acreditava na resposta violenta. Dizia que tais homens ocupavam um espaço deixado pelo abandono de sua gente, um território esquecido por aqueles que estavam nos palácios do poder. O melhor que eles poderiam fazer era estudar, chegar em locais que seus pais nunca imaginaram, levar a voz silenciada para ecoar fora das vielas, barracos e outros tipos de construções inacabadas. Todos deveriam ter direito a ter direitos. 

Os anos se passaram e, sempre juntos, os dois terminaram seus estudos. Era dessa forma que a vizinhança se referia a quem completava o ensino médio. Entretanto, para eles, a busca por conhecimento e por espaço na sociedade só estava começando. 

Bruno ingressou na graduação de Ciências Contábeis e, com o tempo, ajudou diversos comerciantes locais a regularizarem sua situação, organizar os registros fiscais e até a cuidar melhor dos negócios. Júlio, aprovado na faculdade de História, logo estava envolvido com movimento estudantil, organizações de direitos humanos e era facilmente visto em qualquer mobilização em prol de habitação, saúde, educação, tudo que pudesse melhorar a vida de seu povo. 

Nesse ínterim, um grupo paramilitar começou a ganhar força naquele espaço. O discurso inicial era o de proteger a comunidade. Para tanto, começaram a cobrar taxas dos comerciantes locais em troca de segurança. Controlavam transporte ilegal, serviço de internet e até de TV a cabo. Um dia, chegaram a Bruno, que decidiu se unir a eles, motivado por seu ódio aos criminosos que há anos dominavam o território. Inclusive, utilizou seus conhecimentos de contabilidade para auxiliar no processo de lavagem de dinheiro oriundo das atividades ilícitas.

Justo tentou mostrar para o amigo que era tudo farinha do mesmo saco. Nenhum dos dois grupos se importava com aquelas pessoas que ali moravam. Ameaçavam, torturavam e matavam qualquer um que pudesse atrapalhar seus objetivos. Bruno mandou Júlio não se meter nisso e, pela primeira vez na vida, os amigos se afastaram. 

Júlio começou a usar nas redes sociais o codinome de “Justo Pela Paz” e, em seu blog, denunciava todo tipo de violência que chegava a seu conhecimento. Pela riqueza de detalhes, os novos donos do pedaço sabiam que só poderia se tratar de algum morador. 

Indagaram a Bruno sobre a identidade daquele elemento indesejado. Embora Júlio, a essa altura, não lhe contasse mais o que fazia, o contador conhecia aquele estilo de escrita, aquela capacidade de comunicação.  Ele se fez de desentendido o quanto pôde, mas as denúncias já tinham começado a atrapalhar os negócios.

Um dia, Bruno estava acompanhado de dois ou três guarda-costas e, muito contrariado pelos sucessivos prejuízos, avistou Júlio na entrada da comunidade. Com ar de deboche, saudou o antigo amigo: 

– Justo, Júlio Justo, quanta saudade de você, meu velho!

Em seguida, deu um abraço forte e um beijo no rosto do historiador, que estranhou o gesto e seguiu seu caminho, sem dizer uma palavra sequer. Os seguranças, porém, reconheceram o sinal do ósculo bíblico, dado por Judas em Jesus. Não tiveram nenhuma dúvida de que Bruno tinha dito tudo, mesmo sem falar quase nada. Na manhã seguinte, o cadáver de Júlio foi amarrado em um poste, numa praça da comunidade, para exposição e exemplo. 

A partir daquele dia, toda noite passou a ser sem estrelas. Bruno nunca mais conseguiu olhar para elas. Só conseguia dormir dopado, a base de sedativo e de muitas doses de whisky doze anos. Sempre, ao acordar, a voz de Júlio percorria sua mente e só cessava após o pó branco ser inalado e produzir seus efeitos no organismo do Bravo. Bruno então ficava eufórico, muito animado, esquecido de si mesmo e daquele que amou. Nessa nova rotina, passou a sair de casa, todos os dias, para fazer sua campanha a vereador. E as pesquisas apontam que será eleito.