Avenida Governador Amaral Peixoto Nova Iguaçu

Nem te conto, vizinha

Os moradores tão tudo lá na portaria reclamando do seu cheiro. Gritando. Levantando placas. Exigindo medidas. Ameaçando chamar o RJ e a Susana Naspolini. O síndico está desesperado.

Será que os moradores nunca visitaram um IML para ver como o cheiro de defunto lembra o de rato morto?

Os moradores deste condomínio estão cegos diante do odor humano.

Não deu tempo de conhecer seu rosto ou ouvir sua voz, vizinha. Mas me sinto íntimo de sua pessoa. Afinal, agora também conheço seu cheiro.

O cheiro é o último sentido que se perde na velhice. A idosa opera catarata, mas sabe o ponto do bolo. O cheiro é o sentido que melhor evoca as memórias da infância. Proust escreveu oito livros por causa do cheiro dos biscoitos madeleines.
E aqui está a razão maior da dor dos enlutados: o morto vai, o cheiro fica.
A dor do luto dura enquanto durar o cheiro.
Os casais desmanchados sofrem sobretudo por isso: é fácil esquecer um beijo, difícil é libertar-se do hálito.

Ainda assim, a história da cultura confunde-se com a repressão dos cheiros humanos. Desodorantes, enxaguante bucal e talco antisséptico.
Nova Iguaçu, polo cosmético regional, com suas Embelezes e Nielys, vai ser lembrada no futuro como núcleo-duro do fascismo anti-odor.
O cheiro podre que exala dos bueiros da Amaral Peixoto talvez seja uma forma de resistência da cidade.

Gostaria de saber onde você está agora, vizinha. Não creio em Deus, paraíso, essas bobagens. Creio na mera decomposição em matéria orgânica do corpo, mas na prática a biologia é triste demais.
Me consola pensar que esse cheiro podre tomando conta do nosso condomínio seja o seu espírito.
Talvez seu espírito também seja aquilo que exala dos bueiros da Amaral Peixoto.

Querida vizinha, eis o seu gran finale: passaste a velhice sozinha, duas décadas de viuvez, enfiada num apartamento popular, por filhos que nunca vinham te ver, por netos que cessaram as visitas quando cessaram os empréstimos consignados, e ignorada por vizinhos, dentre os quais me incluo.
E agora os moradores se ajuntaram lá embaixo, em uníssono contra o seu corpo morto por três dias dentro do apartamento, é um absurdo ninguém poder removê-lo sem autorização da família, se a família nunca vem, essa velha já estava morta antes de morrer, blá blá blá. Acho que teu corpo está incomodando a classe média-baixa de ver a nova série da Netflix e comer uma pizza com cupom de desconto no IFood.
Que modo mais rebelde de morrer, vizinha.

Nota de rodapé 1: no fim, os condôminos venceram: surgiu um sobrinho e fez os procedimentos três dias depois da sua morte. No terceiro dia, você enfim foi sepultada. No terceiro dia, você morreu. Amém, vizinha, amém.

Nota de rodapé 2: essa história me aconteceu há alguns meses, mas só agora pude desenterra-la.

Nota de rodapé 3: Se a Susana Naspolini ainda estivesse viva e viesse aqui com o RJ, acho que ela se colocaria ao seu lado. Como ela está morta, tenho certeza de que ela já se colocou.

Nota de rodapé 4: escrevo esse conto como um pedido de perdão pela minha ausência. Ao mesmo tempo, é também uma prece. Uma prece deste ateu que põe em xeque toda crença e descrença quando faz literatura.
Que minhas palavras te alcancem, vizinha, que minha narrativa bata à sua porta, amiga querida, que este conto te visite, como eu, jovem escritor, nunca tive tempo de fazer, pois estava ocupado demais por aí, farejando o sucesso.