Não existem pontos finais

Nós tomamos uma garrafa de vinho falando sobre amenidades e lembranças de um tempo pueril. Entre risos e olhares desejosos, fingíamos ali mesmo que aquela era uma noite de celebração à vida, ao cotidiano, às coisas simples que vivemos inconscientes de que seriam memórias vivas em um jantar vinte anos depois. O vinho tinha esse poder de nos fazer falar por horas, eufóricos, amalgamando vidas que tinham traçado caminhos completamente opostos e alimentando fantasias que arranhavam a garganta. Pulamos de um assunto ao outro, falamos do passado que realmente tinha acontecido e do passado que gostaríamos de ter vivido.

– Nós éramos tão jovens, tão cheios de sonhos e ingênuos! – exclamou ela elevando o tom de voz alguns decibéis e levando as mãos ao rosto para cobrir o rubor de alguma lembrança que lhe causou vergonha.

– Deixe disso, era coisa da idade e nós aproveitamos o tempo que tínhamos. – respondi confortando-a ao passo que minhas memórias eram inundadas pelas imagens de meu avô, risonho, tentando falar sobre as fases da vida.

– Você se arrepende de alguma coisa? – perguntou-me curiosa.

– Eu? – me arrependo. – não! – respondi rápido demais e ela me encarou com aqueles olhos inquisitivos, forçando-me a afastar o olhar.

Mudamos de assunto.

Lá pelas tantas da madrugada, quando duas garrafas de vinho vazias pairavam na mesa diante de nós, passamos das frivolidades a qualquer coisa de filosofia, numa conversa de enrolar as línguas com palavras e sensações tão difíceis.

– O que você pensa da vida após a morte? – ela sempre fazia as perguntas olhando dentro dos meus olhos, como um gato encurralando um rato.

– Não sei… Meu avô costumava falar comigo sobre isso antes de eu entrar na fase hostil da adolescência. Depois, foi ficando cada vez mais raras as nossas conversas. – parei de súbito. Aquele era um terreno instável e sentia que se prosseguisse acabaria afundando em areia movediça.

Paramos um minuto em silêncio e ela segurou a minha mão. Olhamo-nos cúmplices da dor que ensinava tanto sobre a efemeridade da vida. Depois de um momento ou dois de ternura tácita, ela abriu a terceira garrafa de vinho e despejou vacilante o líquido bordô em nossas taças e um pouco fora delas:

– Sabe o sol da meia noite? – perguntou-me mudando completamente o assunto e sem esperar pela resposta. – Algumas cidades passam meses sem anoitecer, ainda que a noite nunca tenha realmente abandonado-as e isso sempre me fascinou pela possibilidade de termos um pouco de magia na vida real, mas também por ser inerente a natureza.

E continuou, sustentando o olhar: – A vida é infinita, mas para mim não existe esse tal ponto final por qual nos tornamos obcecados, e por isso ela não nos abandona quando deixamos de ser matéria porque de alguma forma, na ausência de luz e no eco dos pensamentos saudosos, nós continuamos a existir。