Não coêço

Preto Angola

— Não coêço.
— Coece sim, nêgo!
— Não coêço. Se não coêço num presta não.

Aquela dupla com as costas esfregando a lata velha que jazia na beira da beirada da Dutra, sabe-se lá que quilômetro tal, falava de mim, o famoso Angola pé podre.

— Ahhh, pô, quem num coece o Angola? Mas que que tem ele?

Me chamavam Angola pela minha pele mais retinta e pela magreza. A confusão da minha vida toda começou quando eu tinha sete anos lá no quintal da vó Bebé. Era uma paz desgraçada boa de brincar de infância. Eu, pobre que sonha em ser jogador, tabelei a bola com o carro do tio Jânio e errei o chute. A bola não quebrou vidraça, não arrebentou vaso de planta seca. Foi o chinelo duro vagabundo que voou bem lá no alto, bateu na fiação, deu faísca e quando caiu, bom, não caiu, fez foi um estrago. Bateu no copinho fervendo de feijão amigo que tava na mão da minha mãe que se queimou, escorregou e deu uma banda sem intenção no meu pai que tombou, ferrou a coluna e ainda perdeu dois dente da frente. Depois se separaram. No ano seguinte saímos de vez pra uma casa menor. Não queria mais brincar de chutar bola. Deu raiva. Não tinha mais contato com os primo, com os tio, com os amigo da rua porque a rua mudou, só passava carro e ônibus cheio, ruinzão morar no centro. Queria ser rico, poder comer pão com queijo, beber coca, comer chocolate todo dia.

— Então, pô, o Angola morreu.
— Comassim? Morreu de que?
— Mataro – fez gesto de disparo com indicador ao lado da cabeça – esses dia aí lá em Miguel Couto. Mas eu não morri. Quem morreu foi um rapaz que vendia erva, pó e pedra. Mas aí, mesma época que uma senhora na rua me chamou de pobre-diabo porque meu chinelo tinha arrebentado e eu, irritado, deixei ele pra lá, voltei pra casa descalço. Já a tia Lina lá da escola viu minha situação, saiu rapidinho, voltou trazendo um par de havaianas, rá rá rá. Gostava muito de mim, me chamava de diamante bruto. Entendi foi nada na hora. Aí, então, me deram como morto porque “preto é tudo igual”. Um pobre-diabo diamante bruto como eu não morre porque gosta muito de viver. Isso foi um moço de uma ongue lá do Rio que disse quando eu tinha doze anos, depois de eu fugir de casa, partir pra Madureira em busca de emprego no Ceasa e os maluco da rua e das barraca tudo rindo da minha cara de perdido. — Ceasa fica longe, moleque. Só vai arrumar [algo] lá na Central. Puxa pra lá que dá bom. A frase veio incompleta já que bateu o rapa dos guarda e geral bateu em retirada. Morri de medo. Mas aí bateu uma anja na esquina da Hélder Câmara com a José Bonifácio, no Méier. Aí tu vê: sempre falaram que esse Dom Hélder era foda com os pobres e que esse Bonifácio tem nome de maluco playboy vacilão. Que que o destino faz? Ana com um livro na mão leu uma poesia, deu água, ofereceu pão, jogou esperança e disse que Angola era longe, mais longe que o Ceasa e a Central, mas nera nada impossível. Contei minha história. Ela disse “que bom que você está vivo”. O que ela não me contou é que ela mesmo morreria assim que eu me formei na faculdade, sabe? Foi um baque real. Mas o que não caleja o pobre, mata. Sobrevivi. Daí fiquei pensando nos dois caras encostados na lata velha da beira da beirada da Dutra.

— E tu, peste? Tá aí falando do zotro. Qué nada ca vida não? Tem vontade de nada?
— Eu? Eu não. Pra mim tá tudo bom.
— Nem uma grana fácil? Um esquema? Um relógio brilhante? Uma noite lá com as prima da Prata?
— Não, pô. Tô suave.
— Sabe qual teu problema? Tu é apagadão. Vou partir.

A dupla foi desfeita. Um deles entrou em esquema de assalto a joalheria e foi em cana. O outro morreu na mesma operação. Deixou dois
pirralho nas costas da mãe. Saindo da firma, calor da porra, já abrindo os botão da blusa, abri a mochila no ponto de ônibus, tirei sapato,
as meia, joguei chinelo no solo e tomei meu rumo. Já perto de casa veio a bola, a maldita bola. Parei a redonda, respirei fundo e brilhei. Os cria tudo impressionado. E aí moleque, me conhece? Coêço, pô. Quem num te coece, mano? Tu é o … Angola.

Pobre-diabo diamante bruto como eu não morre porque gosta muito de viver. Não quer dizer que quem morre
goste de morrer. Isso não tem como provar. Mas provar que uma pessoa goste de viver é fácil: ela brilha no
claro e no escuro.