Na pior das hipóteses

Aeroporto

Escorou os cotovelos no balcão de vidro temperado e um dos joelhos apoiado na base de madeira.

Pois então, Magno do nada veio com “meu amor, pensei numa coisa aqui. Que tal se a gente instituir o ‘dia da hipótese’ e comemorá-lo? Tá, sei que é coisa de maluco. Antes de você perguntar como seria isso eu já te explico. Cada um de nós inventa uma hipótese nesse dia para comemorar. Uma desculpa para felicidade. Isso, pensa assim. É gostoso só de imaginar”. Menina, num é coisa de doido? E eu falei “nossa, isso é uma grande alucinação e é claro que eu topo”. Ele disse que seria uma desculpa pra sermos felizes. O problema não é esse. A gente já inventou um dia que tínhamos filhos e estávamos comemorando que eles estavam passando um dia na casa da avó. Outro dia a gente foi de penetra a uma festa de criança de uma conhecida lá das funcionárias da faculdade porque a gente fingiu que tinha filho de novo. Aí no Dia das Mães ele me deu um vestido esplendoroso como se eu já fosse mãe.

Sempre envolve esse negócio de filho?

Não, não – invadiu mais um gole de água com gás para seguir – Ele já inventou de comemorar que era Dia do Aviador, comemos num quiosque perto do aeroporto de cara pro Pão de Açúcar. E não é só isso. Já paramos em um restaurante com a réplica de uma estatueta do Oscar e ele se vangloriando de ter sido escolhido como melhor diretor por um filme que contava sobre a fantasia de uma criança se misturando com a realidade. Mas eu também me diverti. Já comemoramos uma vez com champagne em casa a minha eleição como presidente do Brasil com direito a faixa e tudo. A gente já até se fingiu de estranhos na rua e ele chegou gritando, pedindo pra tirar foto como se eu fosse uma celebridade internacional e, acredita que teve gente fazendo a mesma coisa? É sempre muito divertido. O problema é que o dia das hipóteses foi se tornando semana das hipóteses e assim por diante. Eu já tentei conversar com ele, trazer de volta pra realidade, mas o Magno é um viciado no jogo. Até comecei a desacreditar em tudo que ele falava, como se ele fosse um mentiroso costumaz. E não é, sei que não é. O problema é essa viagem toda.

A ouvinte não sabia o que dizer. Seguia trabalhando entre doses quentes e fumaças densas. Apenas pensou que as hipóteses dessa insanidade manifestavam desejos e os desejos pareciam reais.

Mas aconteceu uma coisa. Bom, um vizinho nosso lá do prédio costuma fazer muito barulho. Parece que tem uma serralheria dentro do nosso quarto. Além disso, as marteladas começam sete e meia da manhã, inclusive aos domingos, e terminam com cantorias e gritarias, ele é uma figura da cultura lá da cidade, sempre com saraus e muitos convidados. Reclamamos várias vezes e o cara debochou em todas. Aí já viu, né? Magno um dia brincou uma brincadeira mais séria, disse que a hipótese do dia era o de ser justiceiro. “Hoje vamos comemorar uma morte”, ele disse e brindou com vinho. Picou o queijo minas, salpicou com orégano, lambeu os dedos e gargalhou de uma forma diferente, um alinhamento de dentes que me deu muito medo. Nos recolhemos e dormimos cada um em seu mundo da mesma cama. Comemoramos a hipótese de um homicídio que de fato havia acontecido. Acordamos com sirenes, policiais nos corredores, rastros de sangue em maçanetas, no corredor e, disseram, no sofá do apartamento do vizinho chato. Ei, é assustador, sei o que tá pensando. Acha que o Magno…que o Magno fez isso, né? Que meu marido matou, né?

Eu realmente não posso achar muita coisa. É uma situação muito complicada.

Diz, você também acha que o Magno é assassino?

Olha, que é eu não sei. Mas é bem suspeito isso tudo. Só que isso aqui é uma padaria meio barzinho, não uma delegacia ou clínica. Você precisa contar isso pra polícia e buscar um auxílio psicológico. No mínimo é tudo esquisito e pode ser perigoso.

Deram dois beijos protocolares das despedidas. Enquanto a relatora saía pela porta, a ouvinte limpava as mãos no avental, arrumava os óculos e caminhava ao lado de fora. Deu tempo de ouvir, ao passar para a calçada cheia de mesas e cadeiras, o que seria inaudível.

Viu? Deu certo, meu amor. Agora podemos comemorar que você é suspeito.

Suspeito só? Então tá.