ana maria braga leandro karnal

Interpretação de subtexto

Isso é pra você ler quando acordar. Olha a mesa de café que eu preparei. Com a geleia de laranja que você gosta. Ao menos acho que era laranja a geleia que você comeu no café da manhã da Ana Maria Braga. Ou era tangerina? Espero não ter confundido. Me diga se o travesseiro foi alto o suficiente, você ainda tem duas noites pela frente. Li que você ama travesseiros altos, mas o que é alto pra você, não é? Com a sua subjetividade, seu poder criativo, as palavras são sempre polissêmicas. Como naquele livro em que você narra o significado antitético das palavras primitivas: altus, no germânico medieval, podia significar alto e baixo dependendo do contexto. Puta merda, man, será que quando você disse travesseiro alto quis dizer travesseiro baixo? Espero que não tenha ficado com torcicolo. Levo gelo e Torsilax quando concluir sua tarefa. Se a dor apertar, alongue a cervical. 

De qualquer modo é um prazer recebe-lo. Encontrei o ambiente mais silencioso possível. O barracão não tem wifi, nem rede móvel. Como você disse no Roda Viva, “o silêncio harmoniza com a linguagem”. Bonita pra cacete essa tua frase, man. Por isso escolhi essa mansidão. Só não consegui calar o tique-taque do relógio na parede à sua esquerda, tá vendo? Eu até pensei em trazer uma mensagem motivacional do tipo “imagina que o relógio não está fazendo esse barulho, imagina que ele não existe e foca no processo”, mas depois percebi que coloquei ele aí exatamente para você escutar. Sendo um cronômetro regressivo, deve zerar em 72 horas, e se chegar ao zero, o barracão explode. Tomei cuidado de comprar as bombas mais eficazes, pra deixar o cenário realista. Fica tranquilo, não há casas próximas num raio de quilômetros, não sou maluco de matar alguém por essa razão… mas você pode morrer, man. E agora: vai ou não vai escrever?  

Saquei na última entrevista ao podcast da UOL. Antes da sua suposta aposentadoria ano passado. Aquele papo de “ah, depois que você é best-seller perde a graça escrever”. Aham, sei. Quando o apresentador te perguntou a razão, você disse “ah, qualquer palavra que você escreve as pessoas te elogiam, são raros os leitores sinceros, pipipipópópó”. Eu me senti bem com essa tua fala. Porque eu sempre te elogio, mas não por qualquer palavra, aliás, você nunca escreve qualquer palavra, é sempre A palavra, no lugar certo, nessa sua escrita cirúrgica, artesanal, que fala comigo. Eu sempre percebi que os seus personagens falavam comigo. Não de mim, nem sobre mim, mas comigo. Então eu sou um dos seus leitores sinceros que você citou, porque seus livros falam comigo. E você também fala, eu sei.  

Temos a nossa intimidade desde que você começou com aqueles contos no seu primeiro blog. Que saudade daquele tempo, era o que, 1996? E você já falava comigo pelos comentários. Você sempre respondia os comentários em caixa alta “ESCREVER PRA NÃO MORRER, PoRRaHHh”. Eu ficava de madrugada esperando. Desde aquele tempo eu sou seu leitor sincero. Por isso continuei acompanhando a sua suposta última entrevista ao podcast da UOL, onde anunciaria a aposentadoria. Um crítico convidado te perguntou: “é uma decisão irreversível?” E você respondeu: “eu gostava da pressão, daquela ideia de que morreria se não escrevesse.” Foi aí que conectei. Havia uma mensagem pra mim: olá, meu leitor sincero, me faz um favor, arranje um local distante, um barracão, onde eu tenha comida, cama e um notebook e, por obséquio, coloque uma bomba, que se eu não escrever um  livro de trinta mil caracteres eu possa morrer, literalmente, escrever pra não morrer, porrahh. 

Ah, man, aquele bando de jornalista burro pra cacete caindo na sua conversa de que a carreira estava  encerrada, que queria aproveitar os filhos crescendo no chalé de Itaipava, aquela vidinha burguesa nojenta. Só eu, o seu leitor sincero, captei o pedido de socorro e armei todo esse ambiente propício pra  sua inspiração, produção e publicação de um romance, quem sabe até você não aceite a sugestão de  narrar a história de um escritor lidando com diversos conflitos, como escrever uma obra em três dias pra não ser explodido em mil pedaços enquanto come uma geleia de laranja que talvez não goste.