Grito sem falo

Essa história é de um desejo incontrolável, de espanto e de grito. São três da manhã, ouço, em minha sala, um estrondoso grito de liberdade, de independência, que é a razão de meus dilemas e conflitos. Vários gritos me vêm à cabeça. O mentiroso Grito do Ipiranga é um deles, talvez o mais assustador de todos que já ouvi. Lembrei-me do meu próprio gemido fingido. À essa hora da madrugada, tenho delírios de roçar minha língua nas línguas de muitos corpos femininos. Espero que nenhuma delas me rejeite, e que você, leitor, não me julgue. Ouça, sem constrangimentos, estes gemidos e, se possível, rocem sua língua na minha num beijo prolongado. Certamente, o sentido vai transbordar. Eu me pergunto se é possível um grito de gozo sem falo? Tenho que aprender a gozar meu gozo masculino, sem falo. Que enrascada! Então, três corpos me inspiram.

Três volumosos e exuberantes corpos desejam-se intensamente. Impossível é ignorar esta forma de amor a três. Em vez de casal, formam um trisal. Eles alinham-se. E esse encontro improvável é uma força de gravidade de extrema grandeza, capaz de romper margens e limites. Ao entardecer, sob o efeito deste encontro, marés de Sizígia transbordam, sem fronteiras, como o êxtase. É um fenômeno de amorosidade celeste, como o alinhamento entre o Sol, a Lua e a Terra. Um rumor de fúria e afeto ousa vazar dos corpos gozosos. O gozo, a alegria dos homens e das mulheres, foi ouvido como um estrondoso grito. É o Grito de espanto que destrói os rótulos cristalizados.

No entanto, não há angústia, como há em outro grito, o Grito do norueguês Edvard Munch. É gozo e regozijo transbordante. Felicidade. E esse amor sem limites me deu coragem e me inspirou a convidar, sete corpos femininos para comigo gozar. Isso me aguça ainda mais o desejo. Então, decidi fazer um chamamento às minhas amadas. Com elas quero viver um intenso amor, transatlântico… Eu propus à Paulina Chiziane, roçar minha língua na dela, a mesma língua de Pessoa, nas pessoas de Ana Paula Tavares, Odete Semedo, Diná Salústio, Alda do Espírito Santo, Carolina Maria, Trinidade Besari. Elas ainda não sabem, mas já gozei inúmeras e ininterruptas vezes com seus poemas e
narrativas. Elas ousam experimentar as mais de duzentas e cinquenta milhões de formas de gozar na língua portuguesa. Quanta poliglossia gozosa! Cada vez que o gemido é ouvido, a primazia da última flor do Lácio, a musa da Lusofonia desfaz-se. É muito difícil narrar sobre os êxtases femininos sem escorregar nas supremacias que, se eu me descuidar, bem, já serei eu mesmo escravizado. Eu te convido também, leitor, a roçar a minha língua, suas porosidades, aporias, metáforas e crioulidades. Quero aprender a gozar um grito de libertação. Não permita que nossas diferenças sejam barreiras do pudor. Há de haver conexão e plasticidade como na dança sem sabres. Meu corpo masculino acaba de saborear as muitas formas de gozar em português e sem falo. Serão as marés de Sizígia em mim? Eu acho.