Desnarrativa

Ele emprestou o livro para uma das melhores amigas crente que rolaria alguma coisa, que era uma desculpa dela pra que tivessem mais assunto, mesmo que o livro fosse Ensaio Sobre a Cegueira. E aí? Perguntou a ela uma semana depois. Sem boa resposta, ela não tinha lido. E aí? Perguntou um mês e meio depois. Sem boa resposta, ela estava em outra leitura. Passou o tempo, ele mudou de emprego, ela de bairro. Tomou raiva porque não rolou nada, nada mesmo, perderam contato e, pior, ela se exibia por aí como dona do livro. Viu isso quase um ano depois. Um amigo disse: esquece isso, e ele respondeu: esqueço nada.

Tomado de raiva e com sentimento de posse, aquele sentimento dos covardes, porque, veja bem, o livro era dele, pago com dinheiro do estágio em farmácia e aquilo, portanto, nem era mais ciúme, era vingança. Passou de pesar à raiva, da raiva ao ciúme, do ciúme à obsessão. Agora tomo o livro e o que mais puder, ele disse. Retomou o contato, se fez de sedutor nada inseguro. Ela cedeu ao contato, se fez de seduzida nada insegura.

Marcaram de sair. Um bar, talvez, um café, quem sabe? Acabaram na fila do delivery de pizza, ambos de pé, frente a frente, ela pensando na boca carnuda que falava em Borges e Benedetti, ele pensando em como estaria o livro emprestado. Mas ele falava em Borges, um ex-jogador de futebol que fez sucesso no Santos, e em Nicolás Benedetti, meio-campista do América do México. Não por ignorância, mas para irritação. Ele nem gostava tanto de futebol. A mulher, pensava ele, tinha acabado de se formar em letras e estava naquela época de amar autores latino-americanos. A irritação funcionou e logo depois que pegaram a caixa de pizza quente do homem, se atrapalharam nos passos, deixaram a garrafa de refrigerante cair. Ele abaixou tosco, ela riu, ele se irritou, ela riu mais, aí, ele viu o luar e a puniu com um beijo de cinema. Não qualquer cinema, mas um cinema argentino. O luar era mero detalhe estético.

A sedução, o beijo, o luar, até as buzinas de gente gritando: vai pro motel, nada era romance, era vingança, não se esqueça. Pra minha ou pra sua casa?, ela perguntou. É claro que foram pra casa dela. Enquanto transavam, ela de costas, ele procurava o livro, apertava a cintura morena marcada dela só pra disfarçar, sentia prazer só pra disfarçar. O livro tinha uma capa do filme que cobria a capa original. A do filme tinha Julianne Moore com expressão de perdida. A capa original é aquela com dois homens de terno e cabelos pretos de costas, mas a dele original é a aquela branca com espinhos em tons pastéis. Até que aquele amigo estava certo, misturar daria merda, ele viu que deu. Por quê? Havia uma estante empoeirada de livros não lidos e eles, isso após o gozo, ou desgozo, conversavam.

O embate na estante era entre o livro vendido em livraria e o livro vendido em sebo, um diálogo hipotético ou não, um se sentindo novo e viril, o outro se sentindo exclusivo e original. Exclusivo? Exclusivo como, se você estava no ferro velho dos livros?, disse o livro de livraria. O livro de sebo respondeu: Torça pra que eu seja o seu futuro porque livro de sebo é aquele que toma o rumo de mais leituras, resiste ao tempo e não vai pro lixo. Delírio dos outros livros, sempre sorridentes por ausência de qualquer obra ruim de Carvalho. Até que o homem tomou coragem e perguntou do seu Saramago e, com sotaque de Lisboa, o próprio livro surgiu por detrás do Jorge Amado, ironia de dois autores que trocavam cartas, e acusou o proprietário de abandono de incapaz. Nada é inverossímil nas desnarrativas, já que esse homem virou pro narrador da história e disse: morra!

Rio para o personagem que desejou minha morte. Sem livro, sem narrativa. Quarto frio, livros ao chão. O pior foi a adrenalina baixando, baixando, baixando, a mulher dando tapas, gritando pra ele acordar, os olhos cegando serenos e depois a adrenalina subindo, subindo muito, até que a cabeça parou, ele morreu com que os médicos disseram ter sido ataque do coração e nós, eu desnarrador e vocês leitores e ouvintes, sabemos que ele morreu mesmo foi de literatura.

 

Nota de rodapé: Tudo combina com essa desnarrativa de desamor ao livro. Eu, você, sua imaginação, sua leitura, sua escuta, nossa loucura. Se eu, narrador, pudesse, venderia escritores em sebos e faria um coletivo de livros em noites de terças aleatórias. Proponho a você, escritor, não se chamar de escritor. Chame-se livro..