pintura demònio

Das sombras

Restaurando quadros antigos, sentia-se feliz e útil ao oferecer ao público a obra revitalizada e quase tão vívida quando havia sido pintada, já que algumas, inclusive, possuíam vários séculos.

Ademais, aquele trabalho não apenas lhe remunerava bem, mas também gerava nele imenso prazer. Restaurar quadros há muitos realizados, com figuras e paisagens já esmaecidas pelo tempo e suas intempéries, era como pintar aquelas obras tão sublimes de novo; sentia-se, na verdade, como um tradutor de uma grande obra literária ao transcrevê-la para uma língua na qual não fora escrita. 

Assim, como para um tradutor de Camões, Dante Alighieri ou qualquer outro grande autor de obras-primas da literatura universal, traduzir muitas vezes é como reescrever suas obras, restaurar um quadro para ele era como pintá-lo de novo e oferecê-lo ao público sob uma nova perspectiva já que muitas cores, traços e contornos tinham que, literalmente, ser refeitos para deixar a obra o mais próxima possível do que ela fora quando concebida pela primeira vez.

No entanto, nenhuma obra lhe dera mais prazer em restaurar do que a sobre o qual, naquele momento, ele trabalhava. Não era tanto pelo autor, do qual conhecia e gostava bastante, mas, sobretudo, pelo tema que ela retratava. Era uma tela a óleo que representava a morte do Cardeal Beaufort inspirada em uma cena de “Henrique 7º, Parte 2”, do poeta e dramaturgo britânico William Shakespeare que retrata o cardeal, um conspirador e homem sedento de poder, caminhando em direção aos momentos finais de sua morte.

À medida que restaurava a obra e as figuras tornavam-se mais nítidas, principalmente a do próprio cardeal, no seu leito de morte, a ranger os dentes em agonia, sua emoção aumentava, pois via, ali materializada, diante de seus olhos, aquela cena que tanto lhe impactara a adolescência quando lera a obra pela primeira vez e, depois, com amigos e a própria esposa, assistira à encenação dela no teatro de Sussex.

Retirava do quadro camadas de tintas e verniz que foram sendo acrescentadas durante o tempo e completando, com extremo cuidado, as linhas que haviam se apagado deixando os rostos dos homens ali retratados mais nítidos e como o pintor os havia concebido quando a obra apareceu ao público pela primeira vez em 1789.

No entanto, na proporção em que removia as camadas adicionais de tinta e verniz da obra, notou no canto esquerdo da pintura, logo acima da cabeça moribunda do cardeal, a silhueta de um rosto que, até então, não havia sido revelada. Pelo tamanho, pensou tratar-se do rosto de alguma criança, mas aquilo o deixou intrigado, pois não lembrava de nenhuma criança na cena descrita por Shakespeare. 

Imaginou então que a figura, que aos poucos se revelava, não podia ser um rosto de criança. Tal suposição começou a se mostrar verdadeira quando vislumbrou os olhos da figura que eram muito grandes, quase saindo de suas órbitas a mirar fixamente o cardeal. Teve certeza que aquele não era nenhum rosto humano quando, enfim, duas presas, saindo do lábio superior da criatura, se tornaram visíveis. 

Aquele rosto não era de gente, mas de um demônio irrompendo das sombras muito semelhante aos dos quadros de Bosch como se ele de lá tivesse saído para ali ser enxertado ao lado de Beuafort!

Súbito, percebeu que aquele rosto diabólico havia sido apagado intencionalmente e que ele, agora, séculos mais tarde, o fazia reaparecer para o público. Era como se um novo quadro se redesenhasse ante seus olhos admirados, pois, afinal, conseguia compreender melhor o rosto agônico e desesperado do moribundo, a própria figura do rei de pé ante o leito do cardeal com um dos braços para o alto como se imprecasse contra algo ou alguém e a fisionomia de um dos servos que contemplava a cena num misto de descrença e horror.

Compreendia melhor as próprias palavras do poeta proferidas pela boca do rei:
“- Oh! Derrote o demônio ocupado e intrometido que cerca a alma deste desgraçado.”

Enfim, sobretudo, compreendeu que não importa o quanto venhamos a nos submeter a sucessivas camadas de verniz. Chega uma hora, ainda que seja a derradeira, que devemos encarar nossos erros e demônios.