Dando o sangue

Galinha

Poderíamos dizer que ela deu seu sangue pela família. Mesmo não suportando ver sangue.

Quando criança, e sua mãe ia matar a galinha para o almoço de domingo, dizia: “saia daqui, você fica com pena, aí ela demora pra morrer”. Ela saía de perto e ia chorar longe a dor da “penosa”.

Mas voltando à família, fez tudo que podia e não podia para mantê-la. E aqui falo do manter em todos os aspectos. Do financeiro aos laços de amor, que para ela era o mais importante.

Ah, o amor… esse era o mais importante!

E por esse amor a sua família trabalhava dia e noite.

Pagava todas as contas em dia porque seu nome limpo  era uma das coisas que mais presava.

O marido, coitado, tinha seus vencimentos comprometidos com vários consignados. Não podia arcar com as despesas.

Seu filho mais velho, coitado, precisava de ajuda para manter sua meia dúzia de filhos.

A filha do meio, coitada, vivia fazendo vários cursos porque um dia iria passar para um concurso público.

O filho mais novo, coitado, há anos estava desempregado.

Ela não tinha alternativa. A família precisava dela. Além de demonstrar todo seu amor ela “dava seu sangue” pela família.

Um dia ela percebeu que estava cansada. Estava ficando velha. A aposentadoria chegou. Pensou que iria descansar. Mas as despesas só aumentavam.

Com o tempo livre passou a ser a cozinheira “oficial”. Todos adoravam e elogiavam seu tempero. Além de lavar, passar e limpar a casa. Porém, tudo valia à pena. Sentia-se amada, útil. Era o esteio da família e ela não poderia faltar.

Ao se aposentar perdeu algumas vantagens e, com o passar do tempo, sem aumento, seu salário foi defasando.

Um belo dia ouviu a primeira palavra “mal dita” que até então não havia prestado atenção em outras ocasiões. E à primeira seguiram-se várias: “Você é muito chata”; “preciso que me empreste tanto”; “deixa de ser pão-dura”; “só vou se você pagar as despesas”; “estou sem dinheiro”; “me arrume algum”; “me dá dinheiro pra gasolina”; “deposite tanto para mim”; …

E assim, foi-se embora toda sua economia. O salário não dava mais conta de cobrir todas as despesas. Foi surgindo a sensação de inutilidade, de não se sentir mais amada. E ser amada era tudo e apenas o que queria.

Ela não suportava ver sangue. Sua sorte foi desmaiar após cortar os dois pulsos. Não viu o sangue escorrer.

A família não teve despesas com o sepultamento. Ela pagava a SINAF rigorosamente em dia.