Conversa de coveiro

Ui! Ui! Uiii… Ui! Ui! Uiii… Ui! Ui! Uiii…

Os vizinhos perdiam o sono no início do dia, nas mediações do Cemitério da Solidão, onde as almas cansadas de Belford Roxo descansam…

O assunto foi elucidado, quando o coveiro do Cemitério Municipal de Belford Roxo iniciou a contação da história do grito. Dizia o coveiro com o pé na cova:

— Reza a lenda de joelhos a história deste grito na alvorada…

Continua o cavador de buracos, explicando o acontecido nos anos 70, vigésimo século da hera cristã, época da supremacia das botinas pretas, da cassação dos direitos individuais do povo brasileiro.

Vigília, menina de pouca educação, protagonista do próprio prazer, feminista arretada, já tinha cruzado a língua com a totalidade da galera da “rua do meio”. Parece conto erótico, mas ali tomou fôlego parte significativa da história do hoje município de Belford Roxo, Baixada
Fluminense, Estado do Rio de Janeiro.

Vigília Mendonça de Carmelo estampava uma beleza incomum, decorada por olhos tipo jabuticaba, exibia um corpo escultural, despertava o pecado — um atentado à moral— paraíso da imaginação da garotada…

A danada constituiu matrimônio com José Tarde, senador da república, político biônico empossado pela ditadura militar, sem nenhum voto; fruto de interesses jamais revelados.

O velho mais pra lá do que pra cá, porém moralista, dizia: — Mulher é propriedade particular!

A esposa praticava o orgasmo no chuveiro quente, saía na mão, viajava na maionese…

Nunca havia traído o marido, até o fatídico dia do enterro do prefeito de Nova Iguaçu, quando se apaixonou pelo jovem coveiro do Cemitério da Solidão. Encontrara a alma gêmea, a banda da laranja, a cara metade. Um galã, digno de modelo de filme de terror, enfeitiçou a fêmea carente.

Ao nascimento do Sol, bem cedo, o político dirigia-se ao escritório. A mulher visitava a cidade dos pés juntos, aproveitava para amanhecer nos braços do guardião dos espíritos. Ela refém dos beijos, seguidos de gozos alucinantes, gritava: — Ui! Ui! Uiii…

O romance terminou com um suposto suicídio da adúltera na banheira da mansão do senador, situada na Rocha Carvalho, famosa “rua do meio”.

O esposo, ciente da traição, mandou enforcar o amante na jaqueira, aquela do lado direito da capela, logo na entrada do cemitério.

A vidente, no velório de Vigília de Carmelo Tarde, revelou uma visão dos amantes: via os enamorados escorregando na rampa da morte, abraçados, em direção ao inferno…

O idoso coveiro concluiu a história, desvendou o mistério do grito, levantou e sumiu…