Como dói um furúnculo

Era uma cidade pequena, pacata, provinciana. Como todas cidadezinhas, havia uma pequena uma igreja, a praça, que era rodeada de moradias modestas. A limpeza urbana orgulhava seus moradores. Todos praticamente se conheciam. Era bem arborizada e frondosas árvores se inclinavam sobre as calçadas, saudando os transeuntes, com suas folhagens e aromas das flores da época. Um rio bordejava a cidade, trazendo um ar apaziguador, com a sonoridade contínua das aguas se chocando contra os rochedos preguiçosos. Um pequeno jornal (lógico, o único e quase desnecessário), sempre colaborava com o poder local, onde,  como sempre um “coronel fazendeiro” assumia a cadeira de prefeito. O jornal tinha um papel quase decorativo, já que, parecia que todos sabiam das notícias e fofocas locais, antes do jornal ser impresso. Como seria de se esperar, uma cidade conservadora, onde todos de orgulhavam,de sua privacidade. A cidade parecia um joguinho de dominó; tudo acabava se harmonizando… Até um dia, na pasmacenta rua das margaridas, um casal que até então era visto pelos vizinhos como um exemplo de serenidade e perfeição, e que pareciam, de tão perfeitos, quase má seda, ou uma bela pele, lisa e sedosa, ocorreu um pequeno fato estranho. Tal como um furúnculo que surge de um dia pra outro, seus conflitos irromperam como um abscesso, onde somente a drenagem do pus poderia curar. A drenagem foram brigas, palavrões, xingamentos, encapsulados por anos a fio. Foi então que “a paulada comeu solta…” Naquela atmosfera silenciosa da madrugada, os ruídos e gemidos ecoaram e cavalgaram rapidamente por entre as alamedas. A esposa sempre tão gentil, meiga e amorosa, virou um bicho nervoso, pegando os utensílios da cozinha e “desceu o pau” sobre o machão da casa, fazendo-o parecer uma sopa moída. Foi necessário ser atendido na urgência do lugarejo com vários hematomas. Diante das perguntas curiosas, e movido pela impossibilidade de dizer a verdade, ele respondia que havia caído da escada ao tentar trocar a luz da sala. Rapidamente a fofoca, que é mais rápida do que a velocidade da Luz, se espalhou. O homem retornou à sua casa e percebeu, já no caminho de retorno, os cochichos e risadinhas maliciosas em cada esquina, em cada bar, na porta da igreja… Parecia que todos na cidade o fulminavam com seus  olhares perversos. Sentia-se como um verdadeiro Judas da cidade. Motivo de chacotas e piadas. A cidade tornou-se um mar revolto que conspirava para asfixia-lo. Na cidade que nada tinha de interessante, logo publicou a notícia da briga do casal, sem citar nomes, mas dizia que um cidadão honroso tinha sido vítima de uma surra dada por sua mulher. Sempre orgulhoso, o cidadão murchou de vergonha, como uma flor exposta ao sol. Sabendo que o dono do jornal tinha vários dossiês de diversos cidadãos eminente da cidade e os mantinha em sigilo, maquinou sua vingança. À noite, entrou sorrateiro e roubou vários dados da população local. Vasculhou os dados, como um cachorro faminto, que cavuca um osso enterrado no solo. Ali viu, diante de seus olhos sedentos de sangue, denúncias contra o delegado, contra o vigário, contra o prefeito, a diretora da escola, seu melhor amigo e até de sua ex-esposa… De fato, nunca imaginara que todos os cidadãos daquela cidade pacata, eminentes ou não, pudessem ter tantos desvios de conduta. A lista de delitos era enorme. Desvio do dinheiro público, ameaças, roubo, prevaricação, adultério, falsificações, tráfico de drogas, acobertamento de noticias, infâmias, discriminação, etc, etc… A lista continha todas as páginas do código penal. Resolveu então imprimir, as denúncias, e sorrateiro, de madrugada espalhou milhares de folhas na Praça, pendurando também nas inocentes árvores… Ficou observando a praça por entre a frestas de sua janela. O efeito foi imediato. A perplexidade tomou conta da cidade. O rei estava nu! Correria, desespero, choro, gritos desesperados, olhares oblíquos desviados para o chão… Um verdadeiro alvoroço tomou conta do vilarejo. Foi então que, ciente de sua vitória final, saiu de casa com um ar de contentamento e tranquilidade, observado com espanto pela cidade atônita.