cemitério jardim

Coadjuvantes

Todos estamos morrendo, o problema é que deram uma estimativa para o avô de Arnaldo e ele nunca pagou o Sinaf. Pediu então que o neto mais responsável encontrasse um cemitério civilizado. Agora Arnaldo caminha entre as lápides a fim de achar o local ideal para o avô – de quem os médicos esperam resultados da repetição dos últimos exames sem entusiasmo – mas no secreto pensa no dia em que ele próprio estará indo viver ali, Arnaldo pensa muito na morte.  

Ele para em frente a uma das lápides. Vê o cuidado com o epitáfio, a polidez do mármore. Carrega consigo  uma lista a qual vai ticando os itens. O jazigo é de um morto que está ali desde 1997, Roberto Alvarez, a fotografia já parece o que é, uma coisa do século passado, mas a pedra é limpa e brilhosa, os coveiros devem ser bons. Arnaldo não consegue ignorar que seria satisfatório ser enterrado ali, ele ainda pensa muito na morte. 

Ponto ruim é a favela ao redor, que ele viu no caminho, será que tem tiroteio? Arnaldo imagina um traficante sobre uma laje atirando pro alto após um gol de seu time, e se uma bala perdida ricocheteia no jazigo de vovô, que os médicos acabaram de desenganar, embora estejam decidindo quem contará à família por serem profissionais imaturos e covardes?

Arnaldo escuta uma voz atras de si. Não olha. Será um morto cobrando sua curiosidade? Os mortos circulam por ali, o próprio finado Roberto Álvarez dança em companhia do diabo, uma música que eles não escolheram, um xote. Será um coveiro desconfiado? Os coveiros circulam por ali, um deles terminou o horário do almoço, precisará fazer uma exumação, mas está de má vontade pelo salário atrasado, embora não queira peitar uma greve. Será o traficante da laje? Ainda está na laje, vendo o jogo do seu time, sem conseguir olhar pra TV de  nervoso. Também não é ele. Quando escuta a voz de novo e a percebe feminina, Arnaldo vira-se imediatamente – aí está o machismo, as mulheres não podem nem ser perigosas. É uma mulher chamada Sara. Ele olha os olhos de Sara e pensa no amor, mas não faz ideia de que este é um amor datado, dos apaixonamentos repentinos em que se para de pensar, bem como o modo de morrer de seu avô, isolado naquele  hospital asséptico cheio de homens brancos de branco que agora pedem, inseguros, que os familiares queiram se encaminhar para uma despedida ao moribundo, é questão de horas. Morrer e amar já foram experiências diferentes do que são hoje. Seja como for, Arnaldo lamenta pensar na morte quando ouve a voz de Sara.

Ela pergunta: você conheceu meu pai? Arnaldo mente: O Roberto? Conheci o Roberto sim. Sara irrompe em lagrimas, que logo viram um sorriso de surpresa. Venho aqui desde a adolescência e você é a primeira pessoa que conheceu ele. Arnaldo, gaguejando, pergunta o que ela sabe do pai. Sei que era da Defesa Civil e que mamãe odeia ele, porque deixou a gente sem dinheiro até pra manter a sepultura. Por favor, conta do papai. O traficante rói as unhas pelo jogo retrancado. Um primo de Arnaldo beija seu avô na testa e faz uma última oração esperando milagre. O espírito de Roberto Alvarez segue a dançar com o diabo pelo cemitério, agora um tango que também não escolheram. O coveiro caga antes de voltar ao trabalho. Seu pai foi condecorado depois de salvar uma casa em área de risco. A moça ri e chora. Diz que foi a melhor coisa que já descobriu sobre o pai. Abraça o desconhecido. Ainda abraçados, com os rostos frente a frente, ela diz que aquilo mudou sua percepção paterna, temia que papai fosse um canalha como a mãe contava. Arnaldo se sente culpado, talvez merecesse morrer – ele segue pensando na morte. Ela pede novo abraço. Agora vem com um beijo. Ele nega, por culpa. Não banca a vontade de sentir língua com língua. Ela pendurada em seu  pescoço, agradecendo porque a vida ficou melhor, já que agora podia contar uma história diferente. Enquanto  Arnaldo pensa se beija ou não beija, o time do traficante faz um gol e ele sente vontade de matar, mas em vez  de matar alguém específico, mata qualquer um, disparando um tiro a esmo que atravessa o muro, ricocheteia em duas lápides e atinge a nuca de Arnaldo. Sara foge chorando mais que quando entrou, abandonando o corpo, vítima de novo abandono. Roberto Alvarez, que não é mais pai, é apenas um espírito, não se importa com a tristeza da filha e segue dançando com o diabo, corpos automáticos numa rave infernal; enquanto o coveiro, puto, chega para exumar o corpo que Sara não consegue manter. Lá longe a oração do primo fez efeito de milagre em vovô, que se recuperou, assustando os médicos. Como é um cemitério civilizado, haverá uma vaga, já que Roberto Alvarez foi exumado, o diabo é imortal e vovô não morreu. Tudo indica que a vaga é de Arnaldo, embora Arnaldo já não pense mais na morte.