mendiga

Cicatrizes do tempo

Numa rua de comércio, apinhada de gente, em alguma cidade da Baixada Fluminense, onde faz um calor insuportável, uma mendiga esquálida e catadora de lixo chuta uma bola de gás colorida, dessas que admira-se nas festas. A bola explode em meio à multidão. Numa fração de segundo o povo que caminhava como autômatos ao redor da mendiga para assustado. Tiro? Percebendo o gesto inofensivo da mendiga, retornam à sua marcha cotidiana. A mendiga olha e observa com atenção os televisores estampados atrás da vitrine da loja. Seu
olhar miserável e faminto emana um misto de ignorância, dor, misericórdia e alívio, após contemplar cenas transmitidas na telinha. Entende aquela sequência caótica de cenas como parte de sua própria vida. Vê o boxeador Mike Tyson, o invencível, ser batido por George Foreman. Indignado com sua derrota, dá um dentada na orelha do seu oponente. A derrota, soma-se sua desclassificação. Nada é invencível. Nessas colagens caóticas do olhar, observa Paris, a “cidade luz” em greve, repleta de sacos de lixo. Olha para trás e vê o lixo na cidade da Baixada que, nesse caso, se torna irrelevante diante da imundice da cidade do primeiro mundo. Uma chuva torrencial acaba em avalanche num balneário tropical em São Paulo. Não há paraíso perfeito. 65 pessoas sucumbem e a estatística oficial não falha. É mais fácil contar os óbitos do que fazer prevenção, principalmente quando quem morre são os pobres. Noutra imagem, observa pessoas acéfalas e com coração arrancado pelo ódio (o mesmo que zumbis) subindo a rampa do palácio do planalto para tentar um golpe de estado. Nem ao menos são criativas nesse ato grotesco, pois imitam o mesmo cenário esdrúxulo do grupo que fez o mesmo no poderoso pais do norte da América. Verdadeiras marionetes. A mendiga que participa da vida do “quinto mundo” nunca subirá a rampa do planalto. Talvez a única rampa
que subirá será a “passarela do caracol”, sobre a estrada de ferro para, quem sabe, fuçar as migalhas e restos da cidade dormitório. Absorvida pela imagem da invasão ao palácio do planalto, acompanha o rapaz furioso que derruba um relógio antigo dentro do palácio. Uma preciosidade do tempo de Dom João, 0 relógio tomba e se espatifa sobre o chão. Para ela, aquela cena congela em sua mente e seu coração. O tempo parou! Os ponteiros do relógio perderam o prumo, apontando para todas as direções. Os ponteiros da vida se quebraram. Pelé morreu. A esperança morreu. A mendiga lembra do jogador genial; seus dribles precisos, preciosos, objetivos e cristalinos. A arte do jogo resplandecia em alegria estampada que hipnotizava seu público e onde por vezes ela conseguia torcer no setor da “geral do Maracanã”. Uma lágrima acumulada por anos naqueles olhos artificiais se desprende como um grito mudo, de um personagem que despenca de um edifício em chamas. A lágrima corre lenta sobre a pele de sua face e, ao tocar seus lábios, é devorada tal como o bote de uma cobra; e degusta aquela lágrima como um bife malpassado. Lembra então de sua leucemia, que corrói suas entranhas. Mas agora, tanto faz. Viver ou morrer faz pouca diferença. Vê na televisão mais uma guerra (Vietnam? Iraque? Síria? Somália? Ucrânia?) Essa visão, que se acostumou durante
anos, mostra a dor e o sofrimento, e um tanto da verdade que habita as profundezas da alma humana. Logo, uma dor aguda atravessa seu umbigo. Não, não é uma baioneta! É sua companheira inimiga e eterna: a fome. Recosta suas mãos enfraquecidas e sujas sobre a vitrine
e límpida. Pouco se aguenta em pé. A cabeça se reclina. Observa as faces na televisão. Umas sofrem e outras riem cinicamente, indiferentes ao mundo ao redor. Parece que riem dela e de seu destino miserável. Tudo isso são as marcas de seu tempo feroz. Logo após, a tela da
televisão mostra uma flor radiante e belíssima. Ela morre. No rosto um sorriso possível.