Carta aberta de uma mãe que não verá seu filho crescer

São três e dezoito da manhã do dia onze de maio. Não consigo dormir há cinco noites. Decidi escrever essa carta para que algum jornal publique o que não se pode depreender de uma manchete fria, cheia de porcentagens e estatísticas que não passam de abstrações capazes de reduzir toda a gente em um conjunto numérico aberto.

Não, não. Quero que publiquem a imagem dessa carta, escrita com garranchos quase ilegíveis e borrada por pingos grossos de chuva-lágrima. Chove, chove, chove muito lá fora. Aqui dentro também. As lágrimas açoitam minha janela, tentam violar o meu templo, inundam o meu lar. Chove, chove, chove o suficiente para alegrar a terra árida, o suficiente para afogar o sertão. Chove aqui dentro há cinco dias, sem parar. “A chuva castiga os cariocas”. Que mais, que mais? Barbárie! 80 tiros. O Estado almoçando chacina no self-service da Rua da Quitanda. Anda, anda, anda até o Calvário, das escadas-candelária jorram água e sangue. Da parede em minha sala também. Chove, chove, chove no centro da cidade e apaga-se o sangue como quem usa uma borracha. Seguimos a vida, a buzina, o caos, o carnaval, o samba da esquina, “o policial está dando uma dura nos pivetes”, “a polícia subiu o morro hoje”, “foi tiroteio entre facções”, “os meninos não voltaram pra casa”, “cinco meses sem uma resolução”, “três anos, presente!”. Seguimos em frente. Nossa dor estampando o periódico dominical, impresso ou virtual. Apareço por milésimos de segundo no jornal da manhã, a grita rasgando o peito é televisionada para milhões de pessoas na tentativa de forjar qualquer sentimento complacente e entreter toda essa gente que se alimenta da dor. Estou quebrada, eles trataram de quebrar-me de vez, invadiram o meu íntimo, eles não sentem nada. Vultosas publicações pipocam nas redes sociais, a dor da gente no jornal de domingo. Chora-chove tudo num dia só, segundas-feiras não servem ao luto. As funções de história duram vinte e quatro horas, depois somem. Novos casos de brutalidade vêm na esteira da semana, todos os dias uma dor diferente estampando o jornal. Chora-chove tudo num dia só, você é só mais um caso do descaso. Eu sou só mais um número na estatística, meu menino é outro número no conjunto aberto. A dor da gente sai no jornal, o furo do dia é um buraco na minha parede, na minha carne, no meu espírito extenuado. A dor da gente espalhada pelo Brasil morre sufocada.