Marlene

A fã

Fã é bicho esquisito, é animal predador que não dá chance de fuga para sua vítima. Não tem limite. É loucura que se manifesta em qualquer lugar. Assim era dona Lucinha. Hoje uma vovozinha quase octogenária, que era o terror dos artistas na sua juventude. Ainda menina, nos seus doze anos, no interior do Rio de Janeiro, ouvia num rádio que ficava em destaque na sala da sua casa as mais belas vozes do cancioneiro popular transmitidas pela Rádio Nacional. Chorava compulsivamente quando ouvia a voz de Orlando Silva. Escrevia em seu caderno as mais belas declarações de amor a Isaurinha Garcia, se descabelava e entrava em transe quando Marlene cantava. A mãe, preocupada com tanta paixão desmedida, decidiu em um desses dias dar um basta em tudo aquilo, proibindo-a de ligar o rádio. Foi pior. Saía cedo para estudar e só aparecia em casa a noitinha. Ficava na casa das amigas, que também eram fãs, ouvido a Nacional, lendo a Revista do Rádio e suspirando de paixão pelos seus ídolos. A mãe, uma senhora de temperamento calmo e voz suave, chegara à conclusão que de nada adiantara a sua decisão. Desistiu do castigo e se submeteu aos caprichos da filha, liberando o rádio e um pequeno quarto nos fundos do quintal para que ela e as amigas montassem um fã-clube. No início, o fã clube até que deu certo, porque todas elas não tinham um só ídolo, amavam e adoravam a todos. Mas depois de certo tempo, a relação entre elas azedou. O motivo ? Quando em 1949 aconteceu a disputa da rainha do rádio entre Marlene e Emilinha o grupo se dividiu: uma parte ficou com a Favorita, Emilinha, e a parte de Lucinha com a Maior, Marlene.

A disputa pela vitória de suas candidatas ficou ferrenha. Lucinha  convenceu  a mãe a comprar centenas de Revistas do Rádio, onde vinham as cédulas de votação, e doavam para todos aqueles que votavam na sua candidata. Agora a sua paixão maior. Fazia de tudo para conquistar a simpatia e o voto de todos. Usava peruca, maquiagem, vestido de lamê, se caracterizava de Marlene e saia pelas ruas da cidade com o seu grupo, também vestidas a caráter, a procura de eleitores para sua candidata. Para os moradores daquele lugar, sem muitas novidades, aquela caravana de crianças transvestidas pelas ruas era uma grande diversão e encaravam tudo aquilo como uma brincadeira muito salutar. Isso só não acontecia quando os dois grupos se encontravam. Eram insultos pra lá e pra cá sobre a candidata rival. “A Emilinha é a favorita!” gritava um grupo “A Marlene é a maior!” respondia o outro. As pessoas entravam no meio para apaziguar a desavença e cada grupo seguia 0 caminho contrário. Quando Marlene ganhou a eleição foi uma festa! Ela pediu ao pai (sim, ela tinha pai) que comprasse uma vitrola e alguns disco da Marlene. O pai, que era um homem remediado, trouxera da capital um belo aparelho e quatro discos de 78 rotações lançados naquele ano. Ao som de Macapá, Que nem jiló e outra canções interpretadas por Marlene, a criançada comia biscoito de araruta, bebia Ki-suco, dançava e cantava sem parar. Na intenção de tripudiar, convidaram o fã-clube rival, mas ele não se dava nem o trabalho de responder. Os pais eram só orgulho vendo aquelas crianças se divertindo e ouvindo boa música.

Este histerismo se prolongou por muito tempo. Mas, quando fez 18 anos, Lucinha se sentia enfastiada com aquela vidinha de interior, de conhecer os seus ídolos só através do rádio e das revistas. Não queria mais aquilo. Colocou na cabeça que queria conhecer pessoalmente todos aquele artistas que ela gostava tanto e, principalmente, Marlene. Insistiu tanto com os pais para morar com uma tia, irmã de sua mãe, no bairro de Copacabana, que eles acabaram cedendo mais uma vez aos seus caprichos. Mas impuseram a ela uma condição: tinha que terminar os estudos, se não, nada feito. Sem pestanejar, aceitou de imediato a proposta, mesmo sabendo que dificilmente cumpriria o combinado. Quando chegou em Copacabana ficou impressionada com tudo que viu. Um mar sem tamanho, carros de todos os tipos e prédios enormes. Mas a sua maior ansiedade era saber onde ficava a Rádio Nacional. A tia, uma senhora de 60 anos, de estatura baixa, cabelos ralos e visão turva pelo excesso de leitura, mesmo com dificuldades para andar (quando perguntavam pra ela o que tinha, dizia que era doença da idade), recebeu com muita alegria a sobrinha na porta. A empregada logo trouxe um copo de refresco bem gelado para ela, que se mostrava  cansada da viagem. A primeira coisa que lhe chamou atenção ao entrar no apartamento foram as diversas fotos de artistas espalhadas por toda parede da sala. Em uma delas a foto da tia com a sua maior paixão: Marlene. Contou da sua paixão por ela desde menina e cercou a tia de perguntas sobre a foto e a sua relação com a Maior. A tia, que já tinha sido avisada pela irmã sobre a paixão da sobrinha, não se fez de rogada. Disse que também sempre foi uma fã ardorosa dos cantores do rádio. Que a foto com Marlene foi feita num show em Copacabana. A cada história que a tia contava Lucinha ficava cada vez mais curiosa. Queria saber tudo.

Uma semana depois de chegar em Copacabana e curtir o sol e o mar, descobriu que naquele dia Marlene cantaria na Rádio Nacional. Disse a tia que queria  ir ao show. Chamou um táxi e, junto com empregada, seguiram para a praça Mauá. Quando chegaram em frente ao edifício A Noite, sede da emissora, era uma algazarra sem tamanho. Mulheres de todas as idades se engalfinham para ficar mais próximas da entrada, para ver os seus cantores mais de perto. Naquele dia se apresentariam em um show especial, além de Marlene, Cauby e Orlando Silva. Vendo que não conseguiria romper aquele bloqueio, dá a volta por trás, pula o muro que cercava o prédio, se estatelando no pátio. Tenta levantar mas não consegue. Mais que depressa, recebe a ajuda de dois artistas: Cauby e Orlando, que estavam ali fumando enquanto o show não começava. Quando ela percebe que está sendo erguida pelos seus ídolos, esqueceu toda dor, agarrou, beijou e rasgou a roupa dos dois. Eles, surpreendidos com aquela reação selvagem da fã, pedem ajuda aos seguranças e entram no prédio assustados. Ela, com um sorriso enorme no rosto, é levada para a enfermaria da emissora por dois funcionários contrariados com aquela situação. É repreendida por um dos  médicos da rádio, Doutor Lafaiete, por tal absurda loucura. Mas ela era só alegria. Sabia que ali tinha feito de verdade o seu batismo de fã e que aquele ato que chamavam de loucura era um de muitos que viriam. Depois de medicada, a direção da rádio, por pena, permitiu que ela assistisse ao show no auditório, mas bem distante dos ídolos. No final da apresentação, ainda tirou foto com os ressabiados Cauby e Orlando Silva, e se agarrou no pescoço de uma sorridente, mas cabreira Marlene, ciente do que tinha acontecido antes com os cantores. Lá fora, a empregada da sua tia era só preocupação com o seu sumiço. É quando, de repente, ela aparece na portaria, com o braço enfaixado, mancando e o rosto todo ralado. Naquele momento, em frente ao prédio, só restava a pobre da empregada que, em pânico, perguntava o que tinha acontecido. ”Foi só um tombinho sem importância”, respondia na maior cara de pau. Depois daquele dia a sua presença nos shows eram constante. Não perdia uma apresentação da sua cantora preferida. Além de arquitetar todo tipo de artimanhas para entrar nos seus shows, mesmo que isso lhe custasse mais alguns arranhões.

Hoje Dona Lucinha, quietinha em sua casa, cercada de filhos e netos, guarda com muito orgulho os vários troféus que ela conquistou durante os muitos anos de fã: fotos de seus ídolos por toda casa, uma cueca rosa que ela furtou no camarim de Cauby Peixoto, uma manga de camisa de Orlando Silva, uma bijuteria de Isaurinha Garcia e muitas lembranças de Marlene, nunca doadas por ela. E  para não perder o hábito, um troféu derradeiro: Uma rosa furtada no teatro João Caetano no velório da sua eterna rainha do rádio.