sentidos

A discórdia dos sentidos

O corpo exausto vislumbrou aquela cama bem alinhada a sua frente e, quase como um ímã que atrai o ferro, o corpo jogou-se sobre a cama. O cabeção pousou sobre o travesseiro e, submetido à uma anestesia profunda, logo desligou-se desse mundo. No escuro da caixa craniana, uma luz acesa no topo clareou a mesa no centro da sala de reuniões, ao qual se posicionaram ao redor da mesa todos os sentidos conhecidos: a visão, o tato, a audição, o olfato e a gustação.

A visão, cheia de luz e garbo, com seus cabelos loiros, olhos enormes, sentou-se ao centro da mesa, estrategicamente posicionada. Ao seu lado se posicionaram a audição, o tato, a gustação e o olfato. A visão, vaidosa, começou a se autoproclamar como a rainha dos sentidos. Cheia de empáfia, começou a discorrer sobre sua importância, dizendo que sem ela nada no mundo seria possível. Nem um mísero passo ou a leitura de um livro, nada poderia ser feito sem sua primazia. Os demais sentidos olharam cabisbaixos e de soslaio, percebendo a vaidade transbordar daqueles olhos remelentos.

Logo após o enfadonho discurso da visão, a audição, representada por um par de orelhas enormes, tomou a palavra e defendeu seus argumentos. Dizendo que no escuro a visão de nada serviria, que para se salvar no meio de uma selva obscura somente a audição seria o sentido que poderia nos avisar dos perigos eminentes e salvar o ser humano.

O tato (representado por uma pintura abstrata, como os quadros de Kandinsky), que cobre todo o corpo e nos traz todas as sensações do mundo, mesmo quando não temos visão e audição, defendeu sua importância, pois sem ela, numa selva escura, perguntou em desafio aos outros sentidos: Como poderia correr no chão pedregoso, ou se desvencilhar de árvores ou ramos de árvores caídos e dos espinhos, se não houvesse o tato? Além do mais defendeu perguntando, que sem sua presença, como os seres humanos poderiam sentir um ao outro, no escuro completo, embaixo dos lençóis e dos cobertores, e sentir um verdadeiro tesão, sem sua presença? Fechou dizendo que sem sua presença a espécie não se reproduziria.

A gustação, humilde, uma enorme língua, levantou-se e argumentou que sem sua presença o mundo não teria gosto e sabor, e perguntou aos demais: O que seria mais importante do que saborear uma boa comida e manter através da alimentação a própria espécie, através da alimentação?.

Por fim, o olfato, esse ser pouco conhecido, esse ser primitivo e subestimado, representado por um enorme nariz com coriza, espirrou nos demais sentidos, e contra-argumentou afirmando com altivez que, sim, esse enorme e feio nariz, seria o rei dos sentidos. Apesar de misterioso, defendeu que sem ele não poderíamos nos guiar no escuro, farejar o mundo, tal qual um cão, além de farejar os odores liberados pela fêmea sob os lençóis e cobertores, e que ele seria o motivador e iniciador do tesão. Disse que somente ele poderia aumentar o paladar e propiciar aumentar o sabor dos alimentos. Começou então o furđúncio entre os sentidos. Cada qual apontava o dedo na cara um dos outros, maldizendo seus companheiros e os ameaçando, enaltecendo a si próprios. A luz do dia surgiu, os olhos se abriram, e a razão se posicionou imperativa, sobrando a vaga lembrança da sensação de um estranho pesadelo cheio de vaidades.