A coisa que a gente procura

Sushi sex

Primeira folha de quatro. Escreva algo com o tema erotismo.

Uma vez eu, tímida de canto de sala e canto de boca, inventei que a bexiga estava estourando pra ir ao banheiro depois que a professora falou em aula de redação que quem come é a mulher, não o homem e deixou no ar “pensem como se fosse um cachorro-quente”. Eu tinha treze anos, não entendia por que umas colegas começaram a usar sutiã, um negócio que incomoda e só incomoda. Foi a primeira vez que ouvi sobre relações. Meus encontros são curiosidade, leve envolvimento, sexo no terceiro momento, desprazer, irritação do homem, fuga deles. Nunca sei ser nada. Só fui ter um final feliz – que nem é sempre feliz e parece ser só o início – depois de uma palestra sobre “a coisa que a gente procura” onde uma filósofa e terapeuta sexual esclareceu que sexualidade é particular e original, cada um deve se explorar para perceber onde e como há prazer. Foi quando me reencontrei e entendi que não era a aula, era a professora. Me tornei sexóloga.

Segunda folha de quatro. Escreva algo ainda mais forte com tema erotismo.

Cativantes mesmo sendo o nosso primeiro encontro. Foi a minha primeira percepção. A segunda percepção foi de que a primeira era só impressão. Linda e muito inteligente, tão nova e já com trocentos livros lidos. Quanto tempo pra ela descobrir que numa feira agropecuária ou numa rifa de qualquer produto da Hinode pode facilmente encontrar alguém muito mais interessante que eu? Ainda estagiário. Quanto tempo mais pra ela ir ao banheiro e voltar dizendo que tinha surgido uma urgência familiar e escapulir? Ela falava, eu escutava. Era fantástica falando. Não li esse tal de Jorge Amado. Não li essa tal de Conceição. Pedimos tiras de contrafilé, cervejas e enquanto nada chegava ela foi ao banheiro. O casal mais maduro ao lado cochichava, ria, tentava disfarçar, voltava a sorrir, voltava a cochichar, ficava em silêncio, entreolhava, sorria, tudo trocando toques meio discretos no que pensei que eram mãos que falavam. Queria ser esse casal, comer esse casal, me alimentar do que eram, engolir seus poderes e me tornar poderoso também. Ela de vestido preto solto de material confortável, ele de calça escura e blusa branca sem desenho. Aposto que falavam do que fariam mais tarde, nus, trocando arrepios, desengonçados e harmônicos, rindo e soltando gemidos, como um casal menos cinematográfico e mais real. Porque eu via a cor, um charme de vergonha safada, olhos girando, mãos escondidas, ela falando “sustenta! sustenta!”, ele rindo de nervoso, eu querendo engolir os dois e tomar pra mim a confiança dos encontros canalhas. A mulher inteligente reapareceu. O pedido já estava na mesa. Crianças corriam entre as mesas, avós reclamavam do barulho da praça de alimentação. Mordi a carne, sujei a camisa vermelha, ri. Minha parceira de mesa riu, citou algum autor francês que nunca ouvi falar, riu de si mesma. Eu burro. Ela falava e falava. Eu pensava que não merecia tanto, mas já que estou aqui, preciso fazer. Tentei conduzir a conversa para nós, não para os eles tantos do mundo. A chamei de linda, ela riu. A chamei de inteligente, ela riu e retribuiu. Pedi um beijo. Ela fez silêncio. Fiz silêncio também. O casal maduro levantou. Minha amiga percebeu que a mulher estava arrepiada, todos os pelos ouriçados. Percebi que o cara tentava disfarçar algum volume em destaque. Ela que tanto falava, calou porque eu falei para calar, não com a boca, com o dedo indicador. Shiu! Levantamos e só quarenta minutos depois, já no meu apartamento, ela confessou: não quero pessoas, quero coisas. Eu não sabia coisar. O corpo não fala? Viramos amigos.

Terceira folha de quatro. Escreva algo.

Nos tornamos amigos porque éramos amigos de outros que nem eram tão nossos amigos assim. Mais íntimos ficamos quando notamos uma ausência, a da amizade em comum, e precisamos sair nas buscas por ela que devia estar perdida na volta do mercado do outro lado da cidade histórica da serra carioca, que era onde passávamos o final de semana. A cada pedaço de lugar eu apresentava uma palavra nova, como oferta a entidade que merece, e ela me presenteava com alguma ideia absurda. Um filme ruim bom de assistir. A teoria de que crianças bonitas se tornam adultos feios. Tudo conversa fiada que faz bem. Paramos para um jantar japonês. Ela pediu missoshiru, uma sopa com pasta de soja, caldo de peixe e tofu, e eu fiquei no temaki de salmão. Temaki, dizia o folheto, significava mão (te) enrolado (maki) e começamos aí a falar sobre textura do peixe, temperatura do peixe, sabor do peixe, cheiro do peixe. A cada mordida um arrepio nela e em mim. Beber suco de
laranja, coisa que nada tinha a ver, era provocação velada. Comer então, mais ainda. Pôs um sashimi na boca sugando lentamente. Em silêncio peguei outro do salmão em tira fina e acariciei com a ponta do hashi, ela se mexeu na cadeira, eu respirei fundo. Ela cruzou as pernas, eu alonguei os braços. Ela fixou olhar na minha boca, eu comi e limpei os lábios com a língua. Ela tinha feito igual antes. Não falávamos, sentíamos. Juntou os braços enrolando cada dedo de uma com a outra mão. Juntei as mãos acariciando cada divisão entre os dedos, cada espaço das mãos. Respondemos juntos quando o garçom perguntou se queríamos a conta. Aos poucos esquecemos por quem estávamos procurando. Ou a pessoa não existia mesmo. Ou a pessoa que tanto buscávamos não era pessoa, era coisa. Coisa que devemos ter achado um pouco na mesa, um pouco na rua, um pouco no cruzamento, o resto um dentro do outro. Porque foi assim que um dia eu me peguei, todo dentro dela, lugar quente, coisa úmida, espelho embaçado e a gente escrevendo recados um pro outro, cheiro de fogo perfumado, suor sem acidez, dizem que sushi quer dizer azedo e eu lambuzei o peixe, pelos arrepiados, tava frio, mas tava fogo, e aí ela estava
dentro, tava só quente, coisa que pega fogo mesmo, e nós enfim nos achamos. A coisa que a gente procura.

Quarta folha de quatro. Escreva.

Achou o que procurava? Foi um prazer. E olha que nem usamos a palavra sexo.