whisky bandeja garçom

A brincadeira

O garçom tirou o lacre, abriu a garrafa e nos serviu as três doses. Com gelo. Depois, ele sussurrou algo no ouvido do meu colega de mesa. O colega levantou bruscamente: “então quer dizer que, na tua terra, homem que é homem bebe uísque virando? quero ver tu virar a garrafa toda”. Acho que o garçom não imaginava que sua brincadeira geraria essa reação. Melhor não, o dono da festa não pode me ver bebendo. Meu colega era o dono da festa. O garçom pediu mil desculpas, não quero perder a diária de cinquenta reais. O dono da festa tirou um pataco de notas de cem do bolso, jogou na mesa e disse, se tu beber, mil reais.

Era um Red Label. Tentei acalmar e entreguei meu copo ao garçom, ele só queria uma provinha de uísque caro. O dono da festa segurou minha mão. Subiu na mesa e gritou, vai ter um vira-vira aqui. Em poucos segundos, a festa inteira estava ao nosso redor gritando vira, vira, vira. Era um jogo.

Foi nesse momento que o garçom e eu nos olhamos. E ali percebi que ele estava cogitando a possibilidade de ingerir uma garrafa inteira de uísque. Não que ele gostasse tanto assim. Quando viu aquele bando de estranhos ao seu redor, sentiu um desamparo imenso. Pensou nos mil reais que ganharia numa brincadeira, contrapondo-se aos cinquenta reais que ganharia por seis horas nos servindo. Cinquenta reais que levaria pra mulher comprar mistura no mercado. Que tipo de carne se compra com cinquenta reais? Ele sabia que se tivessem um filho a grana seria mais curta, porém teria mais interesse no serviço. Queria a paternidade, não fosse o problema no útero da esposa. Era frustrante.

Pensou ainda ou trajeto pra chegar em casa, duas conduções contando que pegasse o último ônibus em Cascadura. Ou dormir no ponto e esperar o primeiro do dia seguinte. Depois cochilar duas horinhas, olhar pra mulher e sua cara, a qual não aguentava mais olhar, e sentir imensa saudade da Joice, aqueles encontros apressados na hora do almoço, naquele motel imundo. Até hoje se pergunta por que não trocou de companheira. Provavelmente por covardia. E por achar que devia devoção à esposa. Ou culpa, no fundo era culpa típica dos homens de abandonar a mulher.

Então ele me olhou pela última vez e sorriu como se eu fosse um carrasco e ele aceitasse a sua condenação, Começou a beber. Tentei tomar-lhe a garrafa, mas o dono da festa me segurou. Uh, vai beber, uh. vai beber. Gole a gole, a garrafa na metade, mais um pouco, garrafa esvaziando. Os gritos dos convidados indo do frisson ao espanto, como pode caber tanto uísque num corpo humano? Será um surto psicótico? Será um demônio que o possuiu? Alguém gravou pra postar?

O garçom caiu, a garrafa espatifou. Foi arrastado pra um canto feito saco de esterco e chamaram uma garçonete pra limpar o vidro. O grupo se desfez, cada um pra sua mesa, pegar a bolsa pra ir embora.

Antes de morrer deve ter pensado no início de tudo. Nasceu onde maioria dos homens não têm perspectivas de reconhecimento. Lá, se orgulham pela resistência à cachaça. Tentou fugir do seu destino indo pra outra cidade, queria estudar e ter outros reconhecimentos, mas os sonhos se esvaíram aos poucos. Virou mais um serviçal urbano, e agora ele encerrava sua história como seus concidadãos. Acho que quando fez a brincadeira no ouvido do meu colega de mesa estava reconectando a sua terra natal, lá onde homem que é homem bebe uísque virando. Ou só queria provocar a elite, tirar um representante da nobreza de seu trono simbólico. Ou talvez quisesse uma dose pra trabalhar com as
angústias anestesiadas.

Antes dos convidados partirem, o dono pediu a saideira, DJ, aquela de fim de festa. Tocou Whisky a Go Go. Não consegui dançar.