Cláudia sempre cumpria suas tarefas todos os dias, acordando num cedo normal, não o tão cedo que as pessoas não conseguem assimilar: sete horas. Ia para o trabalho de artesã numa feira em São Cristóvão e, por volta das 16 horas, saía para sua tarefa mais árdua, conquanto, benevolente, na qual se sentia feliz.
Era Cláudia uma benfeitora, pois alimentava os moradores em situação de rua. As ruas, geralmente das metrópoles, têm desses “achados e perdidos humanos”, onde nunca se sabe do que, propriamente, necessitam seus moradores. Eles têm “fome de quê? Têm sede de quê?”, porque a vida “não quer só comida”.
Terminada a refeição, os ouvidos da benfeitora serviam de acolhida para os muitos desabafos. Filho que não voltou nunca mais; marido que trocou o lar pelo álcool; esposa sofredora de doenças mentais; cunhado envolvido com o tráfico; casa desativada que o poder público expulsou os habitantes; filha que apanhava do companheiro; irmã que perdeu o emprego; vidas que não funcionavam mais na máquina pública e privada. Todos os relatos explicavam o porquê daquelas pessoas terem parado naquele estado de coisa.
Todos os relatos não as definiam, entretanto. Só as humanizavam. Pois, pessoas em situação de rua não gostam de rótulos, porque não são caixas de refrigerantes ou remédios para serem “etiquetadas”. São pessoas quais as outras, de carne e osso, e que precisam de todos os alimentos, tanto os de corpo quanto os de alma. “A gente não quer só comida…”
Em via de regra, Cláudia voltava para sua casa combalida. Sentia-se impotente diante de tanta tristeza, por não conseguir aplacar, de forma definitiva, todos os tormentos, as angústias de um cotidiano cruel e imutável daqueles seres humanos, de carne e osso, não feitos de papel de burocracia como muitos pensam.
Mas, ela continuava. Todos os dias. Porque ela também era de carne e osso e conseguia sentir a dor dos que sofriam. Levava bolsas térmicas com quentinhas e pensava, em seu trabalho, se iriam gostar do cardápio do dia, da comida simples, porém bem-feita, caseira e com gosto de dignidade.
Às vezes, a vida concedia uma trégua e Cláudia também se alegrava.
Quando perguntava por esse ou aquele morador e descobria que havia conseguido uma casa, com sala, quarto, cozinha e banheiro. Ou a aposentadoria saiu para alguns. Ou um emprego, mesmo informal, mas que servia para um daqueles do martírio social poder ter o seu “cantinho”. Às vezes também, após estarem alimentados, alguns mais animados e despachados cantavam músicas bonitas, de alto astral. Cláudia sorria!
Uma certa noite, seu horário tradicional de sair de lá às 21h, extrapolou. Ficou entusiasmada com umas histórias interessantes que uma moradora havia lhe contado sobre sua terra natal. O namorado de Cláudia chegou às 22h em sua casa, perguntando por ela para o pai. O senhor, com uma fisionomia alterada, respondeu:
– Cláudia? Você não sabe como ela é? Está com aqueles mendigos até essa hora! Esquece que tem casa – Completou, com ar zangado – Não tem jeito, não. Aquela é um caso perdido…
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