Há pelo menos dois meses que ela vinha se encasquetando com teses existenciais das mais complexas. Enfim, deu por encerrada aquela sua última epopeia acadêmica, findando aquela espécie de rito, com um ponto final em sua tese de mestrado, salvando os arquivos com os contextos de seus inúmeros registros. Desligou o laptop o apoiando sobre os calhamaços amontoados sobre a mesa… Deu-se por satisfeita. Um suspiro eufórico e aliviado. Aquilo tudo até poderia lhe render uns três livros! Houve um tempo em que Sartre até lhe parecera íntimo, quase um tutor. Aquela coisa toda de existir por fora e não existir por dentro, enquanto ser vivente e pensante… “O Ser e o Nada!” – foi barra! Talvez um inseto fosse mais autêntico?
Afrouxou-se de dentro pra fora, despojando-se de sentidos quase viscerais, embora fossem meras alusões simbólicas. Teorias somente… Isso mesmo, apenas vãs teorias! Sim! Em seus trinta e poucos, ainda se questionava, naquele momento de despojamento, sobre algumas escolhas. Relaxar-se, e se preparar pra espairecer durante o feriadão; Lumiar estava ali tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Foi fumar um baseado ouvindo Legião Urbana… Apenas repensaria sobre sexo… Sexo do bom em Lumiar. Com calma, passou a separar algumas roupinhas, peças das mais funcionais possíveis, uns jeans, blusas folgadas, vestidinho maneiro e lingeries sedosas; um par de All Star nº 36 pra usar agora e mais dois pares de calçados – chinelos de dedo e sandálias de salto alto, já se antevendo curtindo naqueles lugares. Espreguiçou-se nua ao feitio dos felinos. Após um belo banho, pôs-se a se aprovar inteira em seu corpo esguio e moreno, nos seus trinta e poucos, atestando-se bem… muito bem, por sinal. Soltar os cabelos encaracolados. Refletira, neste ato, um bem mais de se soltar de si mesma, numa espécie de livramento incondicional das complexas teses existenciais. “Aí Sartre! Chupa essa! Renato Russo… Cazuza… Belchior… Tô indo! Cacete… só gente morta!”. Já na portaria do prédio, bem serelepe com a mochila grená pendente num ombro e uma mala na mão, cumprimentaria o porteiro ao lhe entregar a chave do apartamento. Haveria uma dedetização completa no condomínio. Auxiliada pelo zelador organizaria a bagagem no porta-malas com certa habilidade. Estava em êxtase. Foi-se…
Já à noitinha, as duas saíram para examinar o local. Costumavam invadir os imóveis, aproveitando o silêncio e o abandono. Sorrateiramente, entraram pela cozinha, adentraram a sala, sempre fuçando as coisas aqui e ali; logo se viram diante do laptop em cima dos livros empilhados na escrivaninha e resolveram fazer uma festa ali mesmo. Porém, houve entre elas uma espécie de alucinação coletiva. De repente, do nada, passaram a dar rodopios a esmo uma com a outra, alucinadas… Não, pareciam doidonas mesmo. Com certeza fora pelos efeitos lisérgicos daquela nuvem tóxica que parecia inundar tudo por lá… Enfim, frenéticas, depois oníricas, deitaram com as perninhas pro ar…
Na segunda-feira, de volta ao lar, ela examinaria rapidamente a sala; abriria as janelas pra deixar o ar de fora entrar. Perceberia as duas ali, mortas. Pressentiria algo estranho no ar e um certo arrepio lhe percorrendo pela espinha; logo lhe sobreviria a tal reflexão, quase mediúnica, ao repensar sobre a sua tese de mestrado, de que aquelas baratas estavam exatamente sobre as páginas entreabertas de um velho exemplar de “A Metamorfose”, de Kafka…
…Sarte x Kafka!…
Kafka ou Sartre?
E não tardaria dela, ensimesmada, ver-se diante da tela do laptop, remexendo os arquivos daquela tese…
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