Eu não sabia seu nome e achava até que não precisava de um. Sabia de seu paletó velho que no começo fez com que eu olhasse com desconfiança. Sabia de seu embrulho que continha um grande segredo e fiz várias suposições, marmita, dinheiro, roupa, e até bomba. Por último já não me importava o que fosse. Era como ele, indeciso. sabia de sua pontualidade, das informações que trazia embaixo do braço e corriam entre seus dedos para perder-se na incrível profundidade de seus olhos, que eu imaginava estivessem vendo o próprio fato, uns olhos que não iriam às letras das notícias, uns olhos que viviam o acontecimento sem se perderem com o balanço do trem ou se distraírem com a pregação do evangelho pelo orador e pelo panfleto. Devia ser um homem só, pois trazia a solidão nos bolsos do paletó, na palidez do rosto, na poeira antiga do sapato, no branco opaco do cabelo. Confesso que tive medo após nossos primeiros contatos, que ele nunca soube. Me achava perseguido. Percebi, após a terceira ou quarta viagem, quando ele me disse de primeira página a chacina de Piabetá. Daí começou a perseguição. Não houve um só dia em que não nos cruzássemos e eu, que vivia escondido nos romances, nas crônicas e poemas, era violentamente massacrado pelas manchetes que me repugnavam e que os jornais sensacionalistas editavam em letras garrafais, e conseguiu através dele me arrancar a tranquilidade do mundo em que eu vivia para os ferozes bárbaros acontecimentos do dia a dia. Tentei mudar de vagão, dormir, meditar, mas quando abria os olhos, lá estava ele. Um vigia? Um garagista? Um assaltante? Um fantasma? Com o tempo, passei a me acostumar com sua presença e depois a depender. Eu, considerado independente por todos, me envergonhava quando o meu coração batia mais forte diante da emoção de sua chegada, ou, quando em meio ao turbilhão de outros passageiros, ele se perdia, sumia assim sem ao menos eu perceber a direção ou rumo que ele tomara. Era uma figura incógnita, esquisita.
Foi através dele que eu soube do terremoto na China, da invasão no Paquistão, do estupro da adolescente, da Guerra no Golfo Pérsico, do andamento do campeonato, do suicídio na lagoa, do novo preço da gasolina, dos reféns norte-americanos, da vitória de Reagan, da vinda de Sinatra, da morte de Vinícius, do Beijo do Papa, do aceno do presidente, e uma vez, ao ouvir o menino gritar gelado e doce, reparei que havia, bem perto de seu anel de São Jorge, cerca de treze mil menores abandonados na cidade do Rio de Janeiro.
Nossos olhares nunca se cruzaram a sério, havia entre nós sempre muitas barreiras, de pernas, de troncos, de bundas, de medo, de cismas, de vergonha, barreira de jornal, que me negava um rosto e que parecia, às vezes, uma enorme cabeça que ele segurava com as duas mãos, me dando a impressão que, nela, ele amparava o peso, o vazio e a dor do mundo.
Não parecia crer no destino, não parecia crer em nada, era como se o seu mundo fosse constituído da frigidez dos trilhos, como se o ranger das ferrugens estivesse entranhado em seu esqueleto, e em seu sangue corresse toda a tragédia do cotidiano. Um herói de pedra.
Acredito mesmo que vivia na fronteira entre a vida e a morte e, para ele, talvez o amor não passasse de um conto de fadas ou de vigário, de acordo com os seus próprios gestos e com o grito que eu via preso no cordão de ouro falso em que trazia dependurado um crucifixo, onde não havia um Cristo pregado, que o Cristo parecia ter saído por instantes, ido ao banheiro, talvez, ou recriminar o jogo de baralho no segundo vagão, ou proteger o maquinista, e o pingente de lágrimas nos olhos ou, quem sabe até, tem esse personificado no corpo daquele homem que carregava uma cruz limpa no peito, tendo os ombros para carregar a vida.
O meu companheiro de viagem, passageiro de trem, passageiro de vida, que se chamava João, Antônio, Gustavo, Jorge, Silva, José, Jesus, um homem comum, que embarca em qualquer estação indo para qualquer lugar e que viaja no meu, no seu horário, perdido no meio de tantos outros, que às vezes traz na boca um sorriso besta, com fome talvez, talvez com sono, com os dentes cariados, com o pensamento sangrento, com um revólver na cintura, uma marmita na mão, com um jornal para esconder a tristeza, que as letras não são tão importantes para ele, nosso companheiro que sofre de bronquite, de angina, de vida, e que, depois de algum tempo descobri, nem podia ler.
Luiz Coelho Medina, morador de Nova Iguaçu, RJ, nasceu em maio(sem idade definida. às vezes tem noventa, às vezes tem nove anos), define-se como poeta desde quando começou a rasgar dinheiro; teve o desplante de publicar em 2013 o livro “Pavio D’sperança”, onde na capa, uma mulher está parindo uma bomba; publicou em 2014 o livro “Morador de Lua” (local onde vive até hoje); Em 2015 recebeu da poesia o passaporte para planar pela imaginação e começou a voar em “Alados”. Publicou poemas, besteiras e bobagens (o que dá tudo no mesmo) em periódicos de sua cidade; participou de três Antologias e de algumas quadrilhas (inclusive juninas); Ganhou um Jabuti em 1965 (teve que devolvê-lo ao IBAMA no ano seguinte, pois tratava-se de um animal silvestre); Por ser poeta, continua acreditando nos homens e amando as mulheres, enquanto houver sopro em suas narinas e poesia em suas veias. (fonte: Facebook do autor)
O passageiro foi publicado em Contos de plataforma, em 1981 (acervo: Moduan Matus)
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