Autorretrato

Pintou-se em retratos buscando o eterno no instante. Seguia perdido em suas jornadas para dentro como um náufrago busca terra firme no meio de uma onda. Mesmo assim, continuava riscando os dias do calendário e fazendo o que, não sabia por que fazia: pintava.

No espelho, o rosto que o encarava seriamente não era seu rosto, mas uma imagem apenas. O real rosto que possuía podia somente tocar com os dedos. Nas fotos estava estampado: era um rosto passado que não mais existia. Tanto lhe fazia o rosto que tinha há dez segundos ou o rosto que tinha quando era criança: apenas imagens. Entre dois espelhos somos uma fila infinita por um pouco do tempo. O próprio rosto era finito como tudo é. Tudo estava submetido ao tempo, envelheceria. Amaldiçoou o aniversário e queimou todos os planos.

O tempo era também impossível. O amanhã trazia morte e a manhã as notícias de morte. Segurava-e no café e no cigarro. Principalmente, enfrentava a morte todos os dias através da arte. Seu rosto da ponta do pincel era sempre seu rosto, mas não era nunca o mesmo rosto. Os autorretratos pareciam ecoar como se suas existências fossem além. Fingia que o que transcendia e transbordava ali eram os fantasmas da criatividade.

A arte nem sempre encontra o outro, mas ela sempre atravessa o próprio criador como um punhal. Deus era sem dúvida o maior beneficiário de toda criação. Deveria estar se sentindo sozinho. Já o pintor criava seus autorretratos como quem anda no corredor da morte, sem volta. Jogava xadrez, assistia aos jogos do Botafogo, cozinhava razoavelmente bem.

Foi numa tarde quente de setembro que percebeu. Num poema, se erguia ali, bem no meio da realidade, igual a uma planta que daqui a muitos anos será uma árvore. Com a ponta do dedo, ele tocou o pincel que o pintava: seu autorretrato vivo era a palavra.

E ela crescia sem pressa.