fogão seis bocas

Uma família agitada

Eu e minha namorada estamos num impasse: ela não aceita andar de carro comigo; eu não aceito entrar na casa dela.

A mãe da minha namorada acorda cedo e já desce as escadas, seus chinelos fazem estalidos nos degraus, vai à cozinha e aperta o clic do fogão. Ela gosta de cozinhar. Até demais. Porque o som do clic do fogão vara a manhã inteira e ela usa fogo nas seis bocas. A irmã da minha namorada não acorda cedo porque não dorme a noite toda. Fica escutando música. Quando é meio dia, ela come a comida da mãe da minha namorada e vai ouvir música de novo. O som é audível, mas a letra não se pode compreender, são palavras estranhas. Ela própria é estranha. Minha cunhada, mas estranha.

A tia da minha namorada também mora lá. Ela se exercita no quintal. Em breve fará quarenta anos, e é comovente vê-la tentando se manter em forma apesar da semana corrida e do filho pra criar sozinha. Lá de dentro se escuta o seu trote e sua respiração ofegante. A bisavó da minha namorada anda pelo corredor apoiada numa bengala, que faz uma marcação firme no chão – parece seu compasso cardíaco. Depois liga a TV e assiste o canal da Aparecida. É comum se escutar a TV na missa a tarde toda, como ela aguenta todo aquele latim? Só há uma coisa que ela ame mais que a missa, o seu neto, José.

José é primo da minha namorada e o único homem da casa. Mas ninguém gosta dele: nem a mãe, nem a irmã, nem a tia da minha namorada (que é a mãe do José). Elas ameaçam cortar o pinto dele. Deve ser por isso que se escuta o José chorando no banheiro constantemente. É porque fica preso lá de castigo. Às vezes se estressa e esmurra a porta. Quando o José tá preso no banheiro, minha namorada fica prendendo o xixi.

Minha namorada parece ser a única pessoa tranquila daquela casa e passa seus dias trancafiada no quarto, escutando os sons da família. É por isso que eu não vou lá. Não quero passar os dias trancafiado no quarto. Ela me chama de covarde e tudo, mas digo que não e pronto. Por causa de sua família agitada. Essa justificativa, aliás, não foi cunhada por mim, mas por um pastor. Ele nos contou sobre a rotina familiar quando, questionado por minha namorada sobre tantos ruídos, fez uma visita à casa. Foi então que observou a mãe cozinhando, a irmã escutando música, a tia correndo, o priminho chorando no banheiro e a velha bisavó caminhando no corredor. O que é impressionante, pois minha namorada mora sozinha, já que todas essas cinco pessoas faleceram juntas num acidente de carro há dois anos. E é por isso que ela não anda de carro comigo. Parece que o nosso impasse é insolúvel.