Usina de ossos

Cruz das Almas era um desses lugares tranquilos onde a vida corre mansa e preguiçosa feito água de riacho, e os dias se deixam embalar por velhas cadeiras de balanço que reclamavam, rangendo como pessoas reumáticas. Pelo menos o lugar era assim até que chegaram aqueles homens de ternos escuros e vindo não se sabe de onde. Apareceram por lá com o propósito de montar uma grande indústria. Traziam com eles máquinas e ferramentas e, da noite pro dia, num abrir e fechar de olhos, como se fosse um truque de ilusionismo, os tais homens ergueram uma grande fábrica. A construção foi um tanto soturna e noturna. Não havia nela portas nem janelas. Somente um portão automático dava acesso ao seu interior. Seus arredores eram fortemente guarnecidas por homens e cães, ambos muito ferozes, e não deixava ninguém se aproximar no local. Na fachada, em letras bem grandes, estava escrito “usina de beneficiamento de ossos”. O povo do lugar pensou que a tal indústria fabricava ração para animais ou qualquer outra coisa do gênero, já que os ossos moídos são componentes da matéria-prima básica. Um detalhe: ela, a fábrica, só funcionava durante a noite. Através do seu misterioso portão não entrava nada além dos estranhos caminhões negros envoltos em penumbra. Ninguém sabia o que eles transportavam. Fortunato Cursino, o prefeito vitalício do município, intrigado com aquela estranha movimentação vespertina, mandou chamar ao seu gabinete um dos diretores da empresa, para que ele prestasse alguns esclarecimentos a respeito das atividades relativas a ela. Há quem diga que o homem chegou lá com a maleta cheia de dinheiro sem nada dizer, comprou o silêncio do chefe da municipalidade a peso de ouro. Era o prefeito homem de natureza corrupta e subornável. Semanas depois do caso passado, descobriram que o cemitério da cidade havia sido saqueado. Todas as sepulturas, das mais humildes aos suntuosos mausoléus, haviam sido profanadas. Não restou esqueleto sequer para contar história. Foi um Deus nos acuda.  Ninguém sabia quem foi o autor de tão hedionda façanha.  Quem foi capaz de perturbar o sono dos mortos que dormiu no Campo Santo? Os familiares em prantos reclamavam os restos mortais dos seus entes queridos e exigiram uma satisfação das autoridades locais. O delegado encarregado das sindicâncias mandou intimar toda a diretoria da misteriosa fábrica. Mas o inquérito, sufocado pela grama, acabou indo morar em uma prateleira empoeirada.

Um dia, padre Atanásio, vestido com sua costumeira batina preta, aproveitando-se de uma falha da segurança, entrou e foi verificar o que se passava lá dentro. Ficou estarrecido com o que viu:  operadores separava os ossos e iam remontando os esqueletos. Depois os mergulhavam em um enorme recipiente onde havia um líquido viscoso incolor. Após serem transformados em bonecos revestidos com cera, os funcionários os colocavam em caixas e os classificavam com etiquetas que levavam a seguinte inscrição: pronto para viagem.

O santo homem, após ter visto aquela cena de horrores, saiu de fininho e foi direto para igreja, mandou badalar o sino chamando toda a cidade. Num sermão inflamado, relatou ao povo o que havia presenciado. Houve espanto e consternação geral, porém não passou disso. Na manhã seguinte, bem cedo, todo povo da cidade formava imensas filas no portão da fábrica. Todos eles levavam nas costas imensos sacos de ossos para vender. Era a única coisa que possuíam para arrumar um dinheiro: os despojos dos seus familiares, parentes e amigos que tinham partido desta para a melhor.

O Vigário, fulo de raiva com a cena macabra, excomungou a multidão e aos impropérios se foi só. Havia quem levasse pequenas caixas, tentando vender cinzas. Urnas cheias de ossos misturados eram arrematados com casco e tudo. O presidente da indústria propôs fechar o negócio todo no seu lote e deu pregão por encerrado naquele dia.

Então, a partir daquela data, começaram a acontecer assassinatos em massa. Todos queriam ossos para vender. Finda a carnificina não restou um habitante sequer no vilarejo. A fábrica agora, com a grande quantidade de matéria-prima que acumulara devido à excepcional demanda, funcionava dia e noite ininterruptamente. As encomendas cresceram e, com elas, a produção. Com tanta oferta dos museus de cera já abarrotado, cancelaram os novos pedidos.  Os diretores, em uma reunião macabra, decidiram firmar o excedente juntamente com a fábrica.

Uma nuvem de fumaça negra cobriu toda a região e os homens de preto, envoltos em capotes de fuligem, se foram junto com as sombras da noite, e seus sinistros caminhões.

 

Willian Sertório nasceu em Viçosa, em 1952. Radicado na Baixada Fluminense desde os anos 1960, em Comendador Soares, colaborou com jornais como Correio da lavoura, Opiniões e etc. É compositor, cronista e publicitário. Este conto pertence ao livro O engarrafador  de nuvens (2011), obra que teve seus contos escritos durante a roda de contos denominada Encontos, ocorrida quinzenalmente na casa do escritor Moduan  Matus, entre o fim dos anos 2000 e o começo da década de 2010 (acervo: Jonatan Magella).