Uma família normal

comprimido branco

O dia amanheceu e já estava ensolarado. Uma brisa fresca, resto úmido da noite, atenuava o mormaço. Um campo bem cuidado cercava o condomínio, onde casas com acabamentos perfeitos se acomodavam no entorno arborizado, cercado por um pequeno lago. O pai de família lê com atenção ao jornal, olhando apreensivo para a campainha da porta e o silêncio do ambiente era quebrado somente pelo grande relógio que fazia o monocórdio “tic-tac”. O funcionário do delivery, vestido todo de branco, toca a campainha e a porta quase que automaticamente se abre, pela esposa. Ele deixa o pequeno embrulho nas mãos da esposa e logo se despede. A mãe dá um sorriso de alívio e prazer ao ver aquele objeto tão desejado. Mostra ao pai, que reforça o sorriso de satisfação. As crianças espertas observam de soslaio e com olhar de felicidade, pois sabem que vão receber sua parte. O pai pega o embrulho e o abre, vendo sua preciosidade: pequenos comprimidos que reparte entre ele, esposa e filhos. Logo depois distribui um beijo frio e automático em todos e sai para seu trabalho, talvez em algum escritório próximo. Atravessa o campo e desaparece ao longe. A mãe recomeça suas atividades habituais e que duram todo o dia, enquanto as crianças de deliciam com o videogame. Assiste um pouco de televisão e escuta o rádio, como se nada ali lhe interessasse. Aguarda ansiosa pelo marido, que chega no mesmo horário de sempre. Aspecto cansado, dá outro beijo automatizado e mecânico em todos e se senta em sua poltrona preferida diante de televisão. O jantar já está pronto. Todos rezam como se aquelas palavras saíssem de um gravador dentro deles, mas jantam satisfeitos. O pai, retorna à sua poltrona e assiste às notícias do telejornal. Guerra, paz, crimes, economia complicada, um novo candidato com promessas inatingíveis e religiosos envolvidos em escândalos, prisão de um mafioso e de um miliciano. Recebe uma carta, um convite para participar de um grupo de contos dentro do condomínio, mas logo a faz em picadinhos. Reclama como sempre. Toma mais um comprimido e antes, como se fosse um ritual religioso, olha com todas as esperanças que tem para o pequeno objeto branco redondinho em sua mão, como se fosse a solução mágica para seus problemas, suas confusões, insatisfações e delírios. Dorme, pois amanhã tem mais.

Pode-se dizer que todos os demais dias dessa família nos próximos anos foram idênticos ao parágrafo acima. Uma família normal.

Certo dia, o relógio que fazia “tic-tac”, parou. O funcionário do delivery estava atrasado. A família ansiosa, começou entrar em pânico e desespero. As mãos tremiam, o coração palpitava e a respiração estava ofegante. Todos saem para o gramado em frente de casa, como se estivessem perdido um tesouro. Ao longe surge uma silhueta cinza-claro, quase uma miragem inicialmente imperceptível em meio das árvores que se deslocava rapidamente. O vulto vai tomando forma, até se tornar cada vez mais nítido: era o funcionário do delivery. Ao chegar mais perto seu olhar se mostra entre o desespero e o perdão, porém faz com que os semblantes da família se aliviem. Olham com recriminação para o atraso injustificável do funcionário e entram em casa com o pequeno embrulho, dando as costas, sem lhe agradecer.

O funcionário mal teve tempo de explicar sua falha e seu atraso. Cabisbaixo por seu erro, sobe lentamente sua face, focalizando a fachada da casa e o letreiro que ela ostentava pomposamente e onde estava escrito: ” HOSPÍCIO MUNICIPAL”.